sábado, 30 de abril de 2011

Liturgia da Palavra: “Vimos o Senhor!” II DOMINGO DA PÁSCOA 01.05.2011

II DOMINGO DA PÁSCOA

Leituras: At 2, 42-47; 1 Pd 1, 3-9; Jo 20, 19-31

“Este é o dia que o Senhor fez para nós: alegremo-nos e nele exultemos” (Sl 117, 24- Salmo responsorial).

Este grito de alegria acompanhou a celebração da Eucaristia e da Liturgia das Horas, desde o dia da Páscoa até o dia de hoje, oitavo dia da solenidade. A Eucaristia e a Liturgia das Horas são a fonte da vida divina da Igreja e o cume da sua relação esponsal com Cristo, a expressão mais alta da sua fé e a nascente que alimenta sua vida. No pano do fundo do canto incessante deste salmo messiânico está a visão de fé segundo a qual, contra todas as expectativas humanas, com a morte e ressurreição de Jesus, o projeto de salvação do Pai se realizou, e teve início o tempo novo, o dia definitivo, do qual Cristo é luz e vida (cf Sl 117, 22-24).

É o tempo no qual estamos vivendo, animados pela mesma vida divina de Jesus e iluminados pela sua luz. É o “hoje” da atuação incessante do Espírito do Senhor que se torna sempre contemporâneo para nós. Na tarde da Páscoa Jesus ressuscitado, como atesta o evangelho de hoje, derramou o Espírito criador que tudo renova sobre os discípulos e sobre o mundo inteiro, para a remissão dos pecados, re-estabelecendo a verdadeira relação das pessoas com Deus, consigo mesmas e com os demais (cf. Jo 20, 22-23). Cristo ressuscitado é o novo Adão, a origem e a fonte da nova humanidade. Os batizados são as primícias desta humanidade chamada a viver a mesma qualidade de vida de Cristo. (cf. Rm 5, 12-17).

O segundo domingo é o oitavo dia depois da páscoa. É a sua “oitava”, como se diz na linguagem litúrgica. Celebrar uma festa durante oito dias é privilegio das Solenidades fundamentais do mistério de Cristo: seu nascimento (Natal) e sua morte e ressurreição (Páscoa). Na linguagem simbólica da bíblia, o numero oito diz plenitude, paz, fecundidade divina e repouso. O dia oitavo é o dia do descanso de Deus e de toda a criação (cf. Gn 2,3). A extensão da Solenidade da Páscoa por oito dias indica que, com o evento pascal de Jesus, a história da salvação alcançou sua meta. Nela o mundo goza finalmente a plenitude da vida pela qual foi criado. O dia da ressurreição será indicado pelos cristãos como o “dia do Senhor” por excelência – “o domingo” – , celebrado como o dia que qualifica a existência dos discípulos, totalmente orientado para Cristo, proclamado “Senhor” da história e da própria vida.

A Páscoa é assim ao mesmo tempo o “dia oitavo” (plenitude) e o “dia primeiro” (início e nascente) da nova história. Ela orienta o cristão para a meta da vida na eternidade de Deus, e em certa medida doa-lhe a graça de antecipá-la e de antegozá-la, através do seu clima de liberdade interior, da oração, da partilha fraterna e do descanso. A língua portuguesa guarda felizmente este profundo sentido antropológico e teológico do tempo presente semanal, que é derivado da relação com o Domingo, a páscoa semanal, do momento que se denominam os dias da semana como “segunda-feira”, “terça–feira”, etc., isto é, segunda-festa, terceira-festa..., haja vista que a festa primordial é o próprio Domingo.

Quem sabe quantas pessoas estejam conscientes disso? Não seria uma simples e feliz oportunidade para desenvolver uma profunda e vital catequese sobre o sentido pascal da existência cristã?

A partir desta perspectiva espiritual, a celebração comunitária e solene do domingo se tornou cedo para os cristãos como o dia específico da própria fé e sinal da própria identidade, e por isso mesmo irrenunciável, ainda que ao custo da própria vida. Talvez muitas pessoas conheçam a declaração feita diante do juiz por uma mártir de Abitina (África romana) no séc. IV. Para reivindicar tal direito constitutivo do cristão, dizia ela: “Não podemos viver sem a ceia do Senhor... Sim, fui à assembléia e celebrei a ceia do Senhor com os meus irmãos, porque sou cristã” [1].

Os dias da oitava estão atravessados pelo dinamismo existencial do mistério pascal, ao qual os batizados foram iniciados, e que agora procuram seguir na vida cotidiana, ansiando sua plenitude na eternidade. Do ponto de vista pastoral, seria importante valorizar o tecido espiritual de todos os dias da oitava como contexto interior dos domingos que se seguem durante o tempo pascal.

No dia da Páscoa a Igreja louvou a Deus porque em Cristo, morto e ressuscitado, “nos abristes as portas da eternidade” (Oração do dia), enquanto na segunda-feira pediu que o Senhor “acompanhe” o caminho do seu povo até conseguir a autêntica liberdade, para “um dia alegrar-se no céu como exulta agora na terra” (Oração do dia). Na sexta-feira se tornou explícito o pedido da graça para “realizar em nossa vida o mistério que celebramos na fé” (Oração do dia). A Oração depois da comunhão do segundo domingo implora que “conservemos em nossa vida o sacramento pascal que recebemos”.

Na base desta atitude orante da Igreja está, portanto, a clara consciência de que, em qualquer estágio do caminho cristão, somos ainda “criancinhas recém-nascidas”, que precisamos do leite do Espírito para alcançar a maturidade espiritual (Antífona de Entrada – 1 Pd 2,2).

É fundamental ter presente a sábia insistência com a qual a liturgia hoje, nas leituras bíblicas, assim como nas orações, destaca que este processo dinâmico é fruto da iniciativa compassiva e misericordiosa de Deus, e se ativa graças à fé e não ao esforço humano. Pedro sublinha que “em sua grande misericórdia, pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, ele nos fez nascer de novo, para uma esperança viva, para uma herança incorruptível” (1 Pd 1, 3-4). Na Oração do dia a Igreja volve seu olhar confiante ao Senhor “Deus de eterna misericórdia”, que “reacende a fé do seu povo na renovação da páscoa”. A ele pede a graça de compreender sempre melhor a experiência da iniciação cristã do batismo, da confirmação e da eucaristia.

Acho que seja esta a razão profunda pela qual o bem-aventurado papa João Paulo II desejou que este domingo da oitava se qualificasse também como o “Domingo da misericórdia” de Deus para todo mundo. Focaliza mais uma vez no coração do Pai a nascente da história da salvação, do mistério pascal de Cristo, a origem e a meta do nosso caminho, seguindo a Jesus morto e ressuscitado.

Este dinamismo espiritual, fundamentado na experiência sacramental da iniciação cristã, caracteriza o ciclo inteiro do tempo pascal até a celebração do Pentecostes, constituindo como uma extensão sem interrupção do único e mesmo dia da Páscoa! É um tempo precioso, para aprofundar em espírito de meditação, oração e sensibilidade pastoral, as grandes oportunidades que a liturgia oferece para viver um intenso caminho de graça, desenvolver uma autêntica formação espiritual dos fiéis a partir da liturgia e iniciá-los a uma participação sempre mais profunda e vital.

Neste segundo domingo, contemplamos a páscoa atuando na pessoa de Jesus (evangelho), nos batizados de todos os tempos (2ª leitura) e na comunidade dos primeiros discípulos (1ª leitura). É uma visão de conjunto que destaca o dinamismo permanente da páscoa e da palavra de Deus recebida na fé. Jesus, depois de ter removido, no poder do Espírito, a grande pedra do seu sepulcro, consegue não somente superar o obstáculo dos muros, mas sobretudo derrubar as barreiras do medo e as resistências da frágil fé dos discípulos, fechados em si mesmos e como sepultados em casa por medo dos judeus.

O anúncio da paz por parte de Jesus, o sopro do Espírito sobre eles num gesto de nova criação, a experiência de “ver o Senhor”, transformam o pequeno grupo de medrosos em pessoas cheias de alegria e coragem, prontas para ser enviadas ao mundo, com a mesma disponibilidade livre com a qual Jesus acolheu e atuou o envio recebido pelo Pai. Na força do Espírito, eles se tornam colaboradores do próprio Senhor ao anunciar o reino ao mundo inteiro, e para a instauração da aliança nova, preanunciada pelos profetas em prol do novo povo de Deus.

O novo encontro com os discípulos no domingo seguinte destaca as exigências do caminho de fé que cada discípulo é chamado a cumprir no seguimento do Senhor. Jesus frisa a bem-aventurança da fé, única condição para “ver o Senhor”, isto é, para entrar de maneira vital em relação com Jesus, até deixar que ele seja efetivamente o Senhor da própria existência.

A profissão de fé em Tomé está finalmente completa e o caminho que ele utilizou para chegar a ela torna-se modelo de todo caminho e profissão de fé: “...‘Não sejas incrédulo mas fiel’. Tomé respondeu: ‘Meu Senhor e meu Deus!’. Jesus disse: ‘Acreditaste porque me viste? Bem-aventurados os que creram sem ter visto” (Jo 20, 27-29).

Não cessará jamais a tensão entre o desejo de “ver o Senhor”, no sentido de procurar a experiência pessoal do Senhor como fundamento da vida, e a beatitude da fé sustentada pelo amor confiante, que não pretende outras provas. “Sem ter visto o Senhor, vós o amais. Sem o ver ainda, nele acreditais. Isso será para vós fonte de alegria indizível e gloriosa, pois obtereis aquilo em que acreditais: a vossa salvação” (1 Pd 1, 8-9).

A comunidade dos discípulos em Jerusalém (At 2, 42-47) é o primeiro fruto da Páscoa e modelo de toda possível comunidade futura: uma comunidade de homens e mulheres participantes da ressurreição de Jesus. A vida deles testemunha que é possível agora uma nova maneira de viver e de relacionar-se. Ela se constrói através de um processo contínuo, sobre os fundamentos que serão os pilares da comunidade cristã de todos os tempos: a escuta perseverante da palavra dos apóstolos no espírito de fé; a comunhão fraterna que nasce da união interior, que chega até a partilha dos bens, dando atenção às necessidades diferentes de cada um; a partilha da mesa do pão eucarístico; a oração comunitária, expressão da comum orientação da vida em relação com o Senhor.

O dinamismo da ressurreição se estende da pessoa de Jesus de Nazaré ao seu corpo vivente, os discípulos e a Igreja inteira ao longo do tempo.

Hoje, no domingo antigamente chamado “in albis” [2], em Roma a Igreja proclama com rito solene que o Senhor fez brilhar a luz radiante e o esplendor da sua cruz e da sua ressurreição no seu servo, o Bem-aventurado papa João Paulo II. Certamente uma testemunha pascal dos nossos dias! Na vigorosa energia da sua fé e do seu ministério pastoral, assim como nas tribulações da violência sofrida e na fraqueza da doença, suportada com espírito heróico e simplicidade de criança, ele está hoje no centro da atenção da Igreja e do mundo, com o rosto do Cristo ressuscitado, portador da sua promessa: “Eis, que eu estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos!” (Mt 28,20)

Notas:

1. Ata dos Santos mártires.... PL 8, 709-710. Hoje em dia uma visão sempre mais secular da vida, o consumismo e até mesmo a complexa organização social do trabalho, põem novos riscos e desafios ao entendimento e à prática cristã do domingo. Para valorizar as dimensões teológicas, espirituais e pastorais do domingo para o nosso tempo, à luz da páscoa e no contexto das mutações culturais e sociais, é ainda muito proveitosa uma leitura atenta da Carta apostólica do papa João Paulo II sobre o domingo. Trata-se de uma autêntica pérola de espiritualidade e de sabedoria pastoral. Cf. JOÃO PAULO II. “Dies Domini – O dia do Senhor”. São Paulo: Paulinas, 1998. n. 158.

2. In albis é uma referência às túnicas “alvas”, isto é, brancas, usadas pelos recém-batizados na noite da Vigília Pascal, como sinal que eles tinham sido “revestidos de Cristo”, como diz Paulo. Os neófitos permaneciam vestidos com as vestes brancas durante todo o período da oitava, depondo-as neste domingo.
 
SÃO PAULO, sexta-feira, 29 de abril de 2011 (ZENIT.org ) - Apresentamos o comentário à liturgia do II Domingo da Páscoa – At 2, 42-47; 1 Pd 1, 3-9; Jo 20, 19-31 – redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes - São Paulo). Doutor em liturgia pelo ‘Pontificio Ateneo Santo Anselmo’ (Roma), Dom Emanuele é monge beneditino camaldolense.


* * *

Mensagem do Dia

"Jesus, faz com que eu Te ajude a carregar Tua pesada Cruz." (Padre Pio de Pietrelcina)

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Estamos no caminho rumo a Pentecostes


Ricardo Sá
Foto: Maria Andrea
Jesus morreu por nós, deu Sua vida, vive no meio de nós. Estamos peregrinando neste mundo. Peregrinar exige despojamento, contar com aquilo que pode mudar no meio do caminho, ser disponível. É preciso peregrinar, não podemos mudar o ritmo e Jesus está no meio de nós. Não podemos perder o fio da meada, estamos com Jesus misericordioso em meio a nós.

A Igreja quer nos ajudar a viver junto com Jesus misericordioso o caminho para Pentecostes, a grande promessa, a vinda do Espírito Santo. Precisamos querer caminhar com Jesus misericordioso para a festa de Pentecostes, na qual vamos reviver a vinda do Espírito Santo, que nos faz compreender quem é Jesus e Sua missão.

Com Jesus presente em nosso meio tudo muda, encontramos o caminho. Deus tem para você melhor que uma solução, Ele tem para você o caminho. Jesus e os discípulos eram chamados de “o caminho”, pois o Senhor andava e pregava o Evangelho e Seus discípulos caminhavam atrás d'Ele.

Neste caminho rumo a Pentecostes monsenhor Jonas Abib nos propõe seguir com Jesus misericordioso rumo a Pentecostes, sedimentando nossa caminhada em quatro colunas:

Primeira – Orar com a Igreja. Não deixe como última atividade do seu dia orar, senão isso acaba ficando para trás;


"Estamos peregrinando neste mundo", afirma Ricardo
Foto: Maria Andrea 

Segunda – Leitura orante da Sagrada Escritura. A Palavra de Deus é viva e tem vida. É a Providência do Pai, que segura o leme da nossa vida. É necessário uma ilimitada confiança na Divina Providência. Precisamos nos alimentar da Palavra de Deus para entrar no caminho;

Terceira – Viver em atitude de fé. Busque gastar tempo com isso, ocupe-se com coisas que construam sua vida. Deus está aqui, agora, no momento presente. Esta atitude virá como inspiração, como consequência das outras colunas. A fé está em um lugar muito mais profundo que os nossos sentimentos;

Quarta - Gesto concreto. A fé sem obras é morta, é preciso ter gestos concretos em pequenas coisas. Para tudo isso é preciso dar o primeiro passo em direção à caminhada rumo a Pentecostes. O primeiro passo é muito difícil porque ele pode ser definitivo. Mas não desista, persevere.


Transcrição e Adaptação: Clarissa Oliveira


--------------------------------------------------------------

Ricardo Sá 
Consagrado da Comunidade Canção Nova, cantor e compositor.

Mensagem do Dia

"A vida é uma contínua luta para chegar à salvação." (Padre Pio de Pietrelcina)

domingo, 24 de abril de 2011

Mensagem do Dia

"É pela caridade com o próximo que seremos julgados." (Padre Pio de Pietrelcina)

Homilia de Bento XVI na Vigília Pascal “A Igreja não é uma associação qualquer que se ocupa das necessidades religiosas”

CIDADE DO VATICANO, domingo, 24 de abril de 2011 (ZENIT.org) - Publicamos a homilia que Bento XVI pronunciou na celebração litúrgica da Vigília Pascal, na Basílica de São Pedro.
* * *
Amados irmãos e irmãs,
Dois grandes sinais caracterizam a celebração litúrgica da Vigília Pascal. Temos antes de mais nada o fogo que se torna luz. A luz do círio pascal que, na procissão através da igreja encoberta na escuridão da noite, se torna uma onda de luzes, fala-nos de Cristo como verdadeira estrela da manhã eternamente sem ocaso, fala-nos do Ressuscitado em quem a luz venceu as trevas. O segundo sinal é a água. Esta recorda, por um lado, as águas do Mar Vermelho, o afundamento e a morte, o mistério da Cruz; mas, por outro, aparece-nos como água nascente, como elemento que dá vida na aridez. Torna-se assim imagem do sacramento do Baptismo, que nos faz participantes da morte e ressurreição de Jesus Cristo.
Mas não são apenas estes grandes sinais da criação, a luz e a água, que fazem parte da liturgia da Vigília Pascal; outra característica verdadeiramente essencial da Vigília é o facto de nos proporcionar um vasto encontro com a palavra da Sagrada Escritura. Antes da reforma litúrgica, havia doze leituras do Antigo Testamento e duas do Novo. As do Novo Testamento permaneceram; entretanto o número das leituras do Antigo Testamento acabou fixado em sete, que, atendendo às situações locais, se podem reduzir a três leituras. A Igreja quer, através de uma ampla visão panorâmica, conduzir-nos ao longo do caminho da história da salvação, desde a criação passando pela eleição e a libertação de Israel até aos testemunhos proféticos, pelos quais toda esta história se orienta cada vez mais claramente para Jesus Cristo. Na tradição litúrgica, todas estas leituras se chamavam profecias: mesmo quando não são directamente vaticínios de acontecimentos futuros, elas têm um carácter profético, mostram-nos o fundamento íntimo e a direcção da história; fazem com que a criação e a história se tornem transparentes no essencial. Deste modo tomam-nos pela mão e conduzem-nos para Cristo, mostram-nos a verdadeira luz.
Na Vigília Pascal, o percurso ao longo dos caminhos da Sagrada Escritura começa pelo relato da criação. Desta forma, a liturgia quer-nos dizer que também o relato da criação é uma profecia. Não se trata de uma informação sobre a realização exterior da transformação do universo e do homem. Bem cientes disto estavam os Padres da Igreja, que entenderam este relato não como narração real das origens das coisas, mas como apelo ao essencial, ao verdadeiro princípio e ao fim do nosso ser. Ora, podemo-nos interrogar: mas, na Vigília Pascal, é verdadeiramente importante falar também da criação? Não se poderia começar pelos acontecimentos em que Deus chama o homem, forma para Si um povo e cria a sua história com os homens na terra? A resposta deve ser: não! Omitir a criação significaria equivocar-se sobre a história de Deus com os homens, diminuí-la, deixar de ver a sua verdadeira ordem de grandeza. O arco da história que Deus fundou chega até às origens, até à criação. A nossa profissão de fé inicia com as palavras: «Creio em Deus, Pai todo-poderoso, Criador do Céu e da Terra». Se omitimos este início do Credo, a história global da salvação torna-se demasiado restrita, demasiado pequena. A Igreja não é uma associação qualquer que se ocupa das necessidades religiosas dos homens e cujo objectivo se limitaria precisamente ao de uma tal associação. Não, a Igreja leva o homem ao contacto com Deus e, consequentemente, com o princípio de tudo. Por isso, Deus tem a ver connosco como Criador, e por isso possuímos uma responsabilidade pela criação. A nossa responsabilidade inclui a criação, porque esta provém do Criador. Deus pode dar-nos vida e guiar a nossa vida, só porque Ele criou o todo. A vida na fé da Igreja não abrange somente o âmbito de sensações e sentimentos e porventura de obrigações morais; mas abrange o homem na sua integralidade, desde as suas origens e na perspectiva da eternidade. Só porque a criação pertence a Deus, podemos depositar n’Ele completamente a nossa confiança. E só porque Ele é Criador, é que nos pode dar a vida por toda a eternidade. A alegria e gratidão pela criação e a responsabilidade por ela andam juntas uma com a outra.
Podemos determinar ainda mais concretamente a mensagem central do relato da criação. Nas primeiras palavras do seu Evangelho, São João resumiu o significado essencial do referido relato com uma única frase: «No princípio, era o Verbo». Com efeito, o relato da criação, que ouvimos anteriormente, caracteriza-se pela frase que aparece com regularidade: «Disse Deus…». O mundo é uma produção da Palavra, do Logos, como se exprime João com um termo central da língua grega. «Logos» significa «razão», «sentido», «palavra». Não é apenas razão, mas Razão criadora que fala e comunica a Si mesma. Trata-se de Razão que é sentido, e que cria, Ela mesma, sentido. Por isso, o relato da criação diz-nos que o mundo é uma produção da Razão criadora. E deste modo diz-nos que, na origem de todas as coisas, não está o que é sem razão, sem liberdade; pelo contrário, o princípio de todas as coisas é a Razão criadora, é o amor, é a liberdade. Encontramo-nos aqui perante a alternativa última que está em jogo na disputa entre fé e incredulidade: o princípio de tudo é a irracionalidade, a falta de liberdade e o acaso, ou então o princípio do ser é razão, liberdade, amor? O primado pertence à irracionalidade ou à razão? Tal é a questão de que, em última análise, se trata. Como crentes, respondemos com o relato da criação e com João: na origem, está a razão. Na origem, está a liberdade. Por isso, é bom ser uma pessoa humana. Assim o que sucedera no universo em expansão não foi que por fim, num angulozinho qualquer do cosmos, ter-se-ia formado por acaso também uma espécie como qualquer outra de ser vivente, capaz de raciocinar e de tentar encontrar na criação uma razão ou de lha conferir. Se o homem fosse apenas um tal produto casual da evolução num lugar marginal qualquer do universo, então a sua vida seria sem sentido ou mesmo um azar da natureza. Mas não! No início, está a Razão, a Razão criadora, divina. E, dado que é Razão, ela criou também a liberdade; e, uma vez que se pode fazer uso indevido da liberdade, existe também o que é contrário à criação. Por isso se estende, por assim dizer, uma densa linha escura através da estrutura do universo e através da natureza do homem. Mas, apesar desta contradição, a criação como tal permanece boa, a vida permanece boa, porque na sua origem está a Razão boa, o amor criador de Deus. Por isso, o mundo pode ser salvo. Por isso podemos e devemos colocar-nos da parte da razão, da liberdade e do amor, da parte de Deus que nos ama de tal maneira que Ele sofreu por nós, para que, da sua morte, pudesse surgir uma vida nova, definitiva, restaurada.
O relato veterotestamentário da criação, que escutámos, indica claramente esta ordem das coisas. Mas faz-nos dar um passo mais em frente. O processo da criação aparece estruturado no quadro de uma semana que se orienta para o Sábado, encontrando neste a sua perfeição. Para Israel, o Sábado era o dia em que todos podiam participar no repouso de Deus, em que homem e animal, senhor e escravo, grandes e pequenos estavam unidos na liberdade de Deus. Assim o Sábado era expressão da aliança entre Deus, o homem e a criação. Deste modo, a comunhão entre Deus e o homem não aparece como um acréscimo, algo instaurado posteriormente num mundo cuja criação estava já concluída. A aliança, a comunhão entre Deus e o homem, está prevista no mais íntimo da criação. Sim, a aliança é a razão intrínseca da criação, tal como esta é o pressuposto exterior da aliança. Deus fez o mundo, para haver um lugar no qual Ele pudesse comunicar o seu amor e a partir do qual a resposta de amor retornasse a Ele. Diante de Deus, o coração do homem que Lhe responde é maior e mais importante do que todo o imenso universo material que, certamente, já nos deixa vislumbrar algo da grandeza de Deus.
Entretanto, na Páscoa e a partir da experiência pascal dos cristãos, devemos ainda dar mais um passo. O Sábado é o sétimo dia da semana. Depois de seis dias em que o homem, de certa forma, participa no trabalho criador de Deus, o Sábado é o dia do repouso. Mas, na Igreja nascente, sucedeu algo de inaudito: no lugar do Sábado, do sétimo dia, entra o primeiro dia. Este, enquanto dia da assembleia litúrgica, é o dia do encontro com Deus por meio de Jesus Cristo, que no primeiro dia, o Domingo, encontrou como Ressuscitado os seus, depois que estes encontraram vazio o sepulcro. Agora inverte-se a estrutura da semana: já não está orientada para o sétimo dia, em que se participa no repouso de Deus; a semana inicia com o primeiro dia como dia do encontro com o Ressuscitado. Este encontro não cessa jamais de verificar-se na celebração da Eucaristia, durante a qual o Senhor entra de novo no meio dos seus e dá-Se a eles, deixa-Se por assim dizer tocar por eles, põe-Se à mesa com eles. Esta mudança é um facto extraordinário, quando se considera que o Sábado – o sétimo dia – está profundamente radicado no Antigo Testamento como o dia do encontro com Deus. Quando se pensa como a passagem do trabalho ao dia do repouso corresponde também a uma lógica natural, torna-se ainda mais evidente o alcance impressionante de tal alteração. Este processo inovador, que se deu logo ao início do desenvolvimento da Igreja, só se pode explicar com o facto de ter sucedido algo de inaudito em tal dia. O primeiro dia da semana era o terceiro depois da morte de Jesus; era o dia em que Ele Se manifestou aos seus como o Ressuscitado. De facto, este encontro continha nele algo de impressionante. O mundo tinha mudado. Aquele que estivera morto goza agora de um vida que já não está ameaçada por morte alguma. Fora inaugurada uma nova forma de vida, uma nova dimensão da criação. O primeiro dia, segundo o relato do Génesis, é aquele em que teve início a criação. Agora tornara-se, de uma forma nova, o dia da criação, tornara-se o dia da nova criação. Nós celebramos o primeiro dia. Deste modo celebramos Deus, o Criador, e a sua criação. Sim, creio em Deus, Criador do Céu e da Terra. E celebramos o Deus que Se fez homem, padeceu, morreu, foi sepultado e ressuscitou. Celebramos a vitória definitiva do Criador e da sua criação. Celebramos este dia como origem e simultaneamente como meta da nossa vida. Celebramo-lo porque agora, graças ao Ressuscitado, vale de modo definitivo que a razão é mais forte do que a irracionalidade, a verdade mais forte do que a mentira, o amor mais forte do que a morte. Celebramos o primeiro dia, porque sabemos que a linha escura que atravessa a criação não permanece para sempre. Celebramo-lo, porque sabemos que agora vale definitivamente o que se diz no fim do relato da criação: «Deus viu que tudo o que tinha feito; era tudo muito bom» (Gn 1, 31). Amen.
[Tradução distribuída pela Santa Sé
©Libreria Editrice Vaticana]

sábado, 23 de abril de 2011

Padre Paulo explica como a Igreja vive o Sábado Santo


Neste dia do Sábado Santo, espaço de tempo que começa no por-do-sol da sexta-feira e termina no pôr-do-sol do sábado, a Igreja fica sem o seu Senhor. Porque Jesus jaz no túmulo.
Existe aqui a oração silenciosa e a penitência da Igreja esperando que Nosso Senhor ressuscite. Mas quem era realmente a Igreja que esperava a ressurreição de Jesus?
Era a Virgem Santíssima, Maria, ela sabia da ressurreição de Jesus. Parece que no Sábado Santo a Igreja foi como que reduzida a uma pessoa.
“Bem-aventurada é aquela que acreditou…”
Fonte: http://padrepauloricardo.org/

Pe. Cantalamessa: “Verdadeiramente este era o Filho de Deus!” Homilia de Sexta-feira Santa 2011 na Basílica de São Pedro


CIDADE DO VATICANO, sexta-feira, 22 de abril de 2011 (ZENIT.org) - Apresentamos a homilia que o padre Raniero Cantalamessa, ofmcap., pronunciou hoje na celebração da Paixão do Senhor presidida por Bento XVI na Basílica de São Pedro.
* * * 

“Verdadeiramente este era o Filho de Deus!”
Homilia de Sexta-feira Santa 2011 na Basílica de São Pedro
Na sua paixão - escreve São Paulo a Timóteo - Jesus Cristo "deu o seu testemunho fazendo sua bela profissão" (1 Tm 6, 13). Nós nos perguntamos, testemunho de quê? Não da verdade de sua vida e de sua causa. Muitos morreram, e ainda hoje morrem, por uma causa equivocada, acreditando que seja justa. A ressurreição, esta sim testemunha a verdade de Cristo: "Deus deu a todos prova segura sobre Jesus, ressuscitando-o dos mortos", diz o apóstolo, no Areópago de Atenas (At 17, 31).
A morte não testemunha a verdade, mas o amor de Cristo. De tal amor se constitui, de fato, a prova suprema: “Ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15, 13). Pode-se objetar que há um amor maior do que dar a vida por seus amigos, é dar sua vida pelos seus inimigos. Mas foi isso precisamente que Jesus fez: "Cristo morreu pelos ímpios – escreve o apóstolo na Carta aos Romanos –. A rigor, alguém morreria por um justo; por uma pessoa muito boa talvez alguém se anime a morrer. Mas eis aqui uma prova brilhante do amor de Deus por nós: quando éramos ainda pecadores, Cristo morreu por nós” (Rm 5, 6-8). “Amou-nos quando éramos inimigos, para poder nos tornar amigos” [1].
Uma certa unilateral "teologia da cruz" pode fazer-nos esquecer o essencial. A cruz não é só juízo de Deus sobre o mundo, refutação de sua sabedoria e revelação de seu pecado. Não é NÃO de Deus ao mundo, mas o seu SIM de amor: "A injustiça, o mal como realidade não pode ser simplesmente ignorado, deixado como está. Deve ser eliminado, vencido. Apenas esta é a verdadeira misericórdia. E que agora, já que os homens não são capazes de fazê-lo, Deus mesmo o faz – esta é a bondade incondicional de Deus” [2].
* * *
Mas como ter coragem de falar do amor de Deus, enquanto temos diante dos olhos tantas tragédias humanas, como a catástrofe que se abateu sobre o Japão, ou as mortes no mar nas últimas semanas? Permanecer em completo silêncio seria trair a fé e ignorar o significado do mistério que celebramos.
Há uma verdade a se proclamar com força na Sexta-feira Santa. Aquele que contemplamos sobre a cruz é Deus “in persona”. Sim, é também o homem Jesus de Nazaré, mas esta é uma pessoa com o Filho do Pai Eterno. Até que não se reconheça e leve a sério o dogma fundamental da fé cristã – o primeiro definido dogmaticamente em Niceia – que Jesus Cristo é o Filho de Deus, o próprio Deus, da mesma substância do Pai, a dor humana permanecerá sem resposta.
Não se pode dizer que "a questão de Jó permanece sem resposta", que nem mesmo a fé cristã teria uma resposta ao sofrimento humano, se de saída se recusa a resposta que ela afirma ter. O que se faz para assegurar a alguém que certa bebida não contém veneno? Bebe-se antes dele, na frente dele! Assim fez Deus com os homens. Ele bebeu o amargo cálice da paixão. Não pode ser assim tão envenenado o sofrimento humano, não pode ser apenas negatividade, perda, absurdo, se o próprio Deus escolheu prová-lo. No fundo do cálice deve haver uma pérola.
O nome da pérola nós conhecemos: Ressurreição! "Tenho para mim que os sofrimentos da presente vida não têm proporção alguma com a glória futura que nos deve ser manifestada" (Rm 8, 18), e ainda "Enxugará toda lágrima de seus olhos e já não haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor, porque passou a primeira condição" (Ap 21, 4).
Se a corrida da sua vida acaba aqui, seria muito desesperador pensar nos milhões, talvez bilhões, de seres humanos que iniciam em desvantagem, mergulhados na pobreza e no subdesenvolvimento desde o ponto de partida, até mesmo sem poder participar da corrida. Mas não é assim. A morte não só elimina as diferenças, mas as derruba. “Ora, aconteceu morrer o mendigo e ser levado pelos anjos ao seio de Abraão. Morreu também o rico e foi sepultado” no inferno (cf. Lc 16, 22-23).
Não podemos aplicar de forma simplista este esquema à realidade social, mas ele está lá para nos alertar que a fé na ressurreição não deixa ninguém em seu silencioso viver. Lembra-nos que a máxima "viver e deixar viver" nunca deve se tornar a máxima "viver e deixar morrer".
A resposta da cruz não é apenas para nós, cristãos, é para todos, porque o Filho de Deus morreu por todos. Há no mistério da redenção um aspecto objetivo e um aspecto subjetivo; é o fato em si, e a tomada de consciência e resposta de fé a ele. O primeiro se estende para além do segundo. "O Espírito Santo - diz o texto do Concílio Vaticano II - de um modo conhecido por Deus, dá a todos a oportunidade de estar associados ao mistério pascal" [3].
Um dos modos de estar envolvido no mistério pascal é próprio do sofrimento: "Sofrer  – escreveu João Paulo II na sequência do atentado que sofreu e da longa convalescença – significa tornar-se particularmente receptivo, particularmente aberto à ação das forças salvíficas de Deus, oferecidas em Cristo à humanidade” [4]. O sofrimento, cada sofrimento, mas especialmente o dos inocentes, põe em contato de modo misterioso, ‘conhecido só a Deus’, com a cruz de Cristo.
* * *   
Depois de Jesus, aqueles que têm dado a ele o seu belo testemunho e que têm bebido do cálice são os mártires! As histórias de suas mortes eram intituladas inicialmente “passio”, paixão, como o sofrimento de Jesus que acabamos de escutar. O mundo cristão volta a ser visitado pela prova do martírio, que se acreditava finda com a queda dos regimes totalitários ateus. Não podemos silenciar perante este testemunho. Os primeiros cristãos honravam seus mártires. Os atos de seus martírios eram lidos e distribuídos entre as igrejas com grande respeito. Hoje mesmo, Sexta-feira Santa de 2011, em um grande país asiático, os cristãos oraram e marcharam em silêncio pelas ruas de algumas cidades para protestar contra a ameaça que paira sobre eles.
Há uma coisa que distingue os atos autênticos dos mártires dos legendários, verificada depois que finda a perseguição. Nos primeiros, quase não há vestígios de polêmica contra os perseguidores, toda a atenção é concentrada no heroísmo dos mártires, não sobre a perversidade dos juízes e carrascos. São Cipriano ordenaria aos seus dar 25 moedas de ouro para o carrasco que cortaria a cabeça. Eles são discípulos de alguém que morreu dizendo: “Pai, perdoai-os, pois não sabem o que fazem". “O sangue de Jesus – recorda o Santo Padre em seu último livro – fala uma linguagem diferente da do sangue de Abel: não pede vingança nem punição, mas é reconciliação [5].
Também o mundo se inclina diante dos testemunhos modernos da fé. Isso se explica por exemplo pelo sucesso inesperado na França do filme "Homens e Deuses", que conta a história de sete monges cistercienses assassinados em Tibhirine em março de 1996. E como não ficar admirados com as palavras escritas em seu testamento por um político católico, Shahbaz Bhatti, assassinado por causa de sua fé no mês passado? Sue testamento é deixado também para nós, seus irmãos na fé, e seria ingratidão deixá-lo cair no esquecimento.
"Foram-me propostos – escrevia ele – altos cargos no governo e me pediram para abandonar a minha batalha, mas eu sempre recusei isso, mesmo sob o risco da minha própria vida. Eu não quero popularidade, não quero posições de poder. Eu só quero um lugar aos pés de Jesus. Quero que a minha vida, o meu caráter, as minhas ações falem por mim e digam que estou seguindo Jesus Cristo. Esse desejo é tão forte em mim que eu me considerarei privilegiado se, no meu esforço e na minha luta para ajudar os necessitados, os pobres, os cristãos perseguidos de meu país, Jesus quisesse aceitar o sacrifício da minha vida. Eu quero viver para Cristo e por Ele quero morrer."
Parece ressoar o mártir Inácio de Antioquia, quando veio a Roma e sofreu o martírio. O silêncio das vítimas não justifica a culpável indiferença do mundo para com seu destino. “O justo perece sem que ninguém se aperceba; as pessoas de bem são arrebatadas e ninguém se importa (Is 57,1)”!
* * *
Os mártires cristãos não são os únicos, temos visto, a sofrer e morrer ao nosso redor. O que podemos oferecer aos que não crêem, além da certeza da nossa fé de que há um resgate para a dor? Podemos sofrer com os que sofrem, chorar com os que choram (Rm 12, 15). Antes de anunciar a ressurreição e a vida, na frente das irmãs enlutadas de Lázaro, Jesus chorou (Jo 11, 35).
Neste momento, sofrer e chorar em particular com o povo japonês, imerso em uma das mais terríveis catástrofes naturais da história. Podemos dizer a esses nossos irmãos em humanidade que estamos admirados por sua dignidade e exemplo de postura e ajuda mútua que deram ao mundo.
A globalização tem ao menos este efeito positivo: a dor de um povo se torna a dor de todos, suscita a solidariedade de todos. Dá-nos a chance de descobrir que somos uma família humana, ligada no bem e no mal. Ajuda-nos a superar as barreiras de raça, cor e religião. Como diz o verso de um de nossos poetas, "Homens, paz! Na extensa terra, grande é o mistério" [6].
Mas devemos também recolher o ensinamento de eventos como este. Terremotos, furacões e outros desastres que atingem inocentes e culpáveis nunca são um castigo de Deus. Dizer o contrário disso significa ofender a Deus e os homens. Mas servem de alerta: neste caso, a advertência de não se iludir que bastam a ciência e a técnica para se salvar. Se não formos capazes de estabelecer limites, nós mesmos podemos nos tornar, estamos vendo, a ameaça mais grave de todas.
Também houve um terremoto no momento da morte de Cristo: "O centurião e seus homens que montavam guarda a Jesus, diante do estremecimento da terra e de tudo o que se passava, disseram entre si, possuídos de grande temor: Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus!" (Mt 27, 54). Mas houve um outro ainda "maior" no momento de sua ressurreição: "E eis que houve um violento tremor de terra: um anjo do Senhor desceu do céu, rolou a pedra e sentou-se sobre ela” (Mt 28, 2).
Assim será sempre. A cada terremoto de morte sucederá um terremoto de ressurreição de vida. Alguém disse: "Agora só um deus pode nos salvar" ("Nur noch ein uns kann Gott retten" [7]). Temos a garantia de que o fará porque "de tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único” (Jo 3, 16).
Notas originais em italiano:
1. S. Agostino, Commento alla Prima Lettera di Giovanni 9,9 (PL 35, 2051).
2. Cf. J. Ratzinger - Benedetto XVI, Gesù di Nazaret, II Parte, Libreria Editrice Vaticana 2011, pp. 151.
3. Gaudium et spes, 22.
4. Salvifici doloris, 23.
5. J. Ratzinger - Benedetto XVI, op. cit. p.211.
6. G. Pascoli, I due fanciulli.
7. Antwort. Martin Heidegger im Gespräch, Pfullingen 1988.
[Traduzido do original italiano por ZENIT]

Meditações da Via Sacra de Sexta-feira Santa Por Irmã Maria Rita Piccione , O.S.A.


CIDADE DO VATICANO, quarta-feira, 20 de abril de 2011 (ZENIT.org) - Publicamos a apresentação e meditações da Via-Sacra que Bento XVI presidirá no Coliseu na noite de Sexta-feira Santa, preparadas pela Irmã Maria Rita Piccione, O.S.A., presidente da Federação dos Mosteiros Agostinianos da Itália «Nossa Senhora do Bom Conselho».
PRESIDIDA PELO SANTO PADRE
BENTO XVI
SEXTA-FEIRA SANTA DE 2011
APRESENTAÇÃO
«Se alguém contemplasse de longe a sua pátria mas de permeio estivesse o mar, veria aonde chegar, mas não disporia dos meios para ir até lá. O mesmo se passa connosco… Vislumbramos a meta a alcançar, mas de permeio está o mar do século presente… Ora, a fim de que pudéssemos dispor também dos meios para lá chegar, veio de lá Aquele para quem nós queríamos ir… e forneceu-nos o madeiro com o qual atravessar o mar. De facto, ninguém pode atravessar o mar do século presente, se não é levado pela cruz de Cristo… Não abandones [pois] a cruz, e a cruz te levará».
Estas palavras de Santo Agostinho, tiradas do seu Comentário ao Evangelho de João (2, 2), introduzem-nos na oração da Via-Sacra.
De facto, a Via-Sacra quer estimular em nós este gesto de nos agarrarmos ao madeiro da Cruz de Cristo ao longo do mar da vida. Por isso, a Via-Sacra não é uma simples prática de devoção popular com carácter sentimental; mas exprime a essência da experiência cristã: «Se alguém quiser vir após Mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me» (Mc 8, 34).
É por este motivo que, cada Sexta-feira Santa, o Santo Padre percorre a Via-Sacra à vista de todo o mundo e em comunhão com ele.
Para a preparação da Via-Sacra deste ano, o Papa Bento XVI dirigiu-se ao mundo monástico agostiniano feminino, confiando a redacção dos textos à Ir. Maria Rita Piccione, O.S.A., Presidente da Federação dos Mosteiros Agostinianos da Itália «Nossa Senhora do Bom Conselho».
A Ir. Maria Rita, que pertence ao Ermo Agostiniano de Leccetto (Sena) – um dos eremitérios toscanos do século XIII, berço da Ordem de Santo Agostinho – é actualmente membro da Comunidade dos Santos Quatro Coroados, em Roma, onde tem a sua sede a Casa comum de Formação para as Noviças e as Religiosas Professas Agostinianas da Itália.
E não são apenas os textos que são de uma monja agostiniana; também as imagens ganharam forma e tonalidade a partir de uma sensibilidade artística feminina e agostiniana. A Ir. Helena Maria Manganelli, O.S.A., do Ermo de Leccetto, outrora escultora de profissão, é a autora dos quadros que ilustram as várias estações da Via-Sacra.
Esta interligação de palavra, forma e tonalidade comunica-nos algo da espiritualidade agostiniana, que se inspira na primitiva comunidade de Jerusalém e funda-se na comunhão de vida.
É de benefício para todos saber que a preparação desta Via-Sacra nasce da experiência de monjas que «juntas vivem, pensam, rezam, dialogam», segundo o retrato vivo e eloquente que Romano Guardini esboça de uma comunidade monástica agostiniana.
No início de cada estação, depois da habitual enunciação, aparece uma frase muito breve que pretende oferecer a chave de leitura da respectiva estação. Idealmente podemos recebê-la como que vinda de uma criança, numa espécie de apelo à simplicidade dos pequeninos que sabem captar o coração da realidade e num espaço simbólico de acolhimento, na oração de Igreja, da voz da infância por vezes ofendida e explorada.
A Palavra de Deus, que será proclamada, é tirada do Evangelho de João, à excepção das estações sem texto evangélico de referência ou que o têm noutros evangelhos. Com esta escolha, pretendeu-se evidenciar a mensagem de glória da Cruz de Jesus.
Depois o texto bíblico é ilustrado por uma reflexão breve, mas clara e original.
A oração dirigida ao «Humilde Jesus» – expressão cara ao coração de Agostinho (Conf. 7, 18, 24) –, que deixa cair o adjectivo humilde na crucifixão-exaltação de Cristo, é a confissão que a Igreja-Esposa dirige ao Esposo que a redimiu com o seu Sangue.
Segue-se uma invocação ao Espírito Santo, que guia os nossos passos e que derrama no nosso coração o amor divino (cf. Rm 5, 5): é a Igreja apostólico-petrina que bate à porta do coração de Deus.
Cada uma das estações individualiza uma pegada particular deixada por Jesus ao longo do Caminho da Cruz, que o crente é chamado a copiar. Assim os passos que marcam o caminho da Via-Sacra são: verdade, honestidade, humildade, oração, obediência, liberdade, paciência, conversão, perseverança, essencialidade, realeza, dom de si mesmo, maternidade, expectativa silenciosa.
Os quadros da Ir. Helena Maria – sem figuras nem elementos acessórios, mas essenciais na cor – apresentam Jesus sozinho na sua Paixão, que atravessa a terra deserta nela escavando um sulco e regando-o com a sua graça. Um raio de  luz, sempre presente e colocado de modo a formar uma cruz, indica o olhar do Pai, enquanto a sombra de uma pomba, o Espírito Santo, recorda que Cristo, «pelo Espírito eterno, Se ofereceu a Si mesmo a Deus, sem mácula» (Heb9, 14).
Com este contributo para a oração da Via-Sacra, as Monjas Agostinianas desejam prestar um preito de amor à Igreja e ao Santo Padre Bento XVI, em profunda sintonia com a particular veneração e fidelidade que a Ordem Agostiniana professa à Igreja e aos Sumos Pontífices.
Agradecemos a estas duas irmãs, a Ir. Maria Rita e a Ir. Helena Maria, que, alimentadas pela contínua meditação da Palavra de Deus e dos escritos de Santo Agostinho e sustentadas pela oração das Comunidades da Federação, aceitaram, com toda a simplicidade, partilhar a sua experiência de Cristo e do Mistério Pascal, num ano em que a celebração da Santa Páscoa tem lugar precisamente a 24 de Abril, dia do aniversário do Baptismo de Santo Agostinho.
 INTRODUÇÃO
Cristo padeceu por vós, deixando-vos o exemplo, para que sigais os seus passos[1].
Irmãos e Irmãs em Cristo,
encontramo-nos, esta noite, no sugestivo cenário do Coliseu romano, convocados pela Palavra agora mesmo proclamada, para percorrer, juntamente com o Santo Padre Bento XVI, o Caminho da Cruz de Jesus.
Fixemos o nosso olhar interior em Cristo e invoquemo-Lo com coração ardente: «Peço-Vos, Senhor! Dizei à minha alma: sou Eu a tua salvação! Dizei-o de maneira que eu o ouça!»[2].
A sua voz animadora cruza-se com o fio débil do nosso «sim» e o Espírito Santo, dedo de Deus, tece a trama segura da fé que conforta e conduz.
Seguir, acreditar, rezar: eis os passos simples e seguros que sustentam a nossa estrada ao longo do Caminho da Cruz e nos deixam vislumbrar, gradualmente, o caminho da Verdade e da Vida.
[1] 1 Ped 2, 21.
[2] S. Agostinho, Confissões 1, 5, 5 (doravante todas as citações, diversas da Sagrada Escritura, que não indiquem o autor são de S. Agostinho).
ORAÇÃO INICIAL
O Santo Padre:
Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.
R/.
 Amen.
O Santo Padre:
Oremos.
(breve pausa de silêncio)
Senhor Jesus,
Vós nos convidais a seguir-Vos também
nesta vossa hora extrema.
Em Vós, está cada um de nós
e nós, apesar de muitos, somos Um só em Vós.
Na vossa hora, está presente a hora da provação
da nossa vida,
nos seus aspectos mais crus e duros;
está presente a hora da paixão da vossa Igreja
e da humanidade inteira.
Está presente a hora das trevas:
quando «tremem os fundamentos da terra»[1]
e o homem, «parcela da vossa criação»[2],
geme e sofre com ela;
quando as várias máscaras da mentira
ridicularizam a verdade
e as lisonjas do sucesso sufocam
o apelo íntimo da honestidade;
quando o vazio de sentido e de valores
anula a obra educativa
e a desordem do coração desfigura a ingenuidade
dos pequeninos e dos débeis;
quando o homem perde o caminho
que o leva ao Pai
e já não reconhece em Vós
o rosto belo da própria humanidade.
Nesta hora, insinua-se a tentação da fuga,
o sentimento da desolação e da angústia,
enquanto a traça da dúvida corrói a mente
e, como no palco, o pano da escuridão cai sobre a alma.
E Vós, Senhor,
que ledes no livro aberto do nosso frágil coração,
voltais a perguntar-nos nesta noite,
como um dia aos Doze:
«Também vós quereis ir embora?»[3].
Não, Senhor,
não podemos nem queremos ir embora,
porque só «Vós tendes palavras de vida eterna»[4],
Só Vós sois «a palavra da verdade»[5]
e a vossa Cruz
é a única «chave que nos abre aos segredos
da verdade e da vida»[6].
«Nós Vos seguiremos para onde quer que fordes!»[7].
Nesta adesão, está a nossa adoração,
enquanto, do horizonte do ainda não,
um raio de alegria
beija o  do nosso caminho.
R/. Amen.
[1] Is 24, 18.
[2] Confissões 1, 1, 1.
[3] Jo 6, 67.
[4] Jo 6, 68.
[5] Ef 1, 13.
[6] Cf. Exposição sobre o Salmo 45, 1.
[7] Cf. Mt 8, 19.
PRIMEIRA ESTAÇÃO
Jesus é condenado à morte
 Jesus cala-Se; guarda em Si a verdade
V/. Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi.
R/.
 Quia per sanctam Crucem tuam redemisti mundum.
Do Evangelho segundo João 18, 37-40
Pilatos disse a Jesus: «Logo, Tu és rei!» Respondeu-lhe Jesus: «É como dizes: Eu sou rei! Para isto nasci, para isto vim ao mundo: para dar testemunho da Verdade. Todo aquele que vive da Verdade escuta a minha voz». Pilatos replicou-Lhe: «Que é a verdade?» Dito isto, foi ter de novo com os judeus e disse-lhes: «Não vejo n’Ele nenhum crime. Mas é costume eu libertar-vos um preso na Páscoa. Quereis que vos solte o rei dos judeus?» Eles puseram-se de novo a gritar, dizendo: «Esse não, mas sim Barrabás!» Ora Barrabás era um salteador.
Pilatos não encontra motivo algum de condenação em Jesus, tal como não encontra em si próprio a força para se opor a tal condenação.
O seu ouvido interior permanece surdo à Palavra de Jesus e não compreende o seu testemunho da verdade.
«Ouvir a verdade é obedecer-lhe e acreditar nela»[1]. É viver livremente sob a sua orientação e entregar-lhe o próprio coração.
Pilatos não é livre: está condicionado do exterior, mas aquela verdade escutada continua a ressoar no seu íntimo como um eco que bate à porta e desinquieta.
Por isso vem fora, para encontrar os judeus; «foi ter de novo» com eles, sublinha o texto, como que um impulso para fugir de si mesmo. E a voz que lhe chega de fora, prevalece sobre a Palavra que está dentro.
Aqui se decide a condenação de Jesus, a condenação da verdade.
Humilde Jesus,
também nós nos deixamos condicionar por aquilo que está fora.
Já não sabemos escutar a voz subtil,
exigente e libertadora da nossa consciência
que, dentro, amorosamente faz apelo e convida:
«Não saias fora, reentra em ti mesmo:
é no teu homem interior que habita a verdade»[2].
Vinde, Espírito de Verdade,
ajudai-nos a encontrar, no «homem oculto no íntimo do coração»[3],
o Rosto Sagrado do Filho
que nos renova na Semelhança Divina.
Todos:
Pater noster, qui es in cælis:
sanctificetur nomen tuum;
adveniat regnum tuum;
fiat voluntas tua, sicut in cælo, et in terra.
Panem nostrum cotidianum da nobis hodie;
et dimitte nobis debita nostra,
sicut et nos dimittimus debitoribus nostris;
et ne nos inducas in tentationem;
sed libera nos a malo.
Stabat Mater dolorosa
iuxta crucem lacrimosa
dum pendebat Filius.

[1] Cf. Comentário ao Evangelho de João 115, 4.
[2] A verdadeira religião 39, 72.
[3] Cf. a nota da Bíblia de Jerusalém a 1 Ped 3, 4.
SEGUNDA ESTAÇÃO
Jesus é carregado com a Cruz
 
Jesus leva a cruz, carrega sobre Si o peso da verdade
V/. Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi.
R/.
 Quia per sanctam Crucem tuam redemisti mundum.
Do Evangelho segundo João 19, 6-7.16-17
Os sumos sacerdotes e os seus servidores gritaram: «Crucifica-O! Crucifica-O!» Disse-lhes Pilatos: «Levai-O vós e crucificai-O. Eu não descubro n’Ele nenhum crime». Os judeus replicaram-lhe: «Nós temos uma Lei e, segundo essa Lei, deve morrer, porque disse ser Filho de Deus». (…) Então, entregou-O para ser crucificado. E eles tomaram conta de Jesus. Jesus, levando a cruz às costas, saiu para o chamado Lugar da Caveira, que em hebraico se diz Gólgota.
Pilatos hesita, procura um pretexto para soltar Jesus, mas cede à vontade que prevalece e vocifera, que se apela à Lei e faz insinuações.
E continua a repetir-se a história do coração ferido do homem: a sua mesquinhez, a sua incapacidade de sobrelevar o olhar de si mesmo para não se deixar enganar pelas ilusões da magra compensação pessoal e erguer-se para o alto seguindo o voo livre da bondade e da honestidade.
O coração do homem é um microcosmo.
Nele, se decidem os grandes destinos da humanidade, resolvem-se ou agravam-se os seus conflitos. Mas o ponto decisivo é sempre o mesmo: acolher ou perder a verdade que liberta.
Humilde Jesus,
na contínua sucessão dos dias da vida
o nosso coração olha para baixo, para o seu pequeno mundo,
e, todo absorvido pela contabilidade do próprio bem-estar,
fica cego à mão do pobre e do indefeso
que mendiga atenção e pede ajuda.
Quando muito comove-se, mas não se move.
Vinde, Espírito de Verdade,
cativai o nosso coração e atraí-o a Vós.
«Guardai sadio o seu paladar interior,
para poder saborear e beber
a sabedoria, a justiça, a verdade, a eternidade»[1]!
[1] Comentário ao Evangelho de João 26, 5.
Todos:
Pater noster, qui es in cælis;
sanctificetur nomen tuum;
adveniat regnum tuum;
fiat voluntas tua, sicut in cælo et in terra.
Panem nostrum cotidianum da nobis hodie;
et dimitte nobis debita nostra,
sicut et nos dimittimus debitoribus nostris;
et ne nos inducas in tentationem;
sed libera nos a malo.
Cuius animam gementem,
contristatam et dolentem

pertransivit gladius.
TERCEIRA ESTAÇÃO
Jesus cai pela primeira vez
Jesus cai; mas, manso e humilde, levanta-Se
V/. Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi.
R/.
 Quia per sanctam Crucem tuam redemisti mundum.
Do Evangelho segundo Mateus 11, 28-30
«Vinde a Mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu hei-de aliviar-vos. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de Mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para o vosso espírito. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve».
As quedas de Jesus, ao longo do Caminho da Cruz, não pertencem à Sagrada Escritura; são um legado da piedade tradicional, guardado e cultivado no coração de tantos em oração.
Na sua primeira queda, Jesus dirige-nos um convite, abre-nos um caminho, inaugura uma escola para nós.
É o convite para ir ter com Ele na experiência da impotência humana, a fim de descobrir nela o enxerto da Potência divina.
É o caminho que conduz à fonte da autêntica saciedade, a da Graça que basta.
É a escola onde se aprende a mansidão que acalma a rebeldia e onde a confiança toma o lugar da presunção.
A partir da cátedra da sua queda, Jesus propõe-nos sobretudo a grande lição da humildade, «o caminho que O levou à ressurreição»[1]. O caminho que, depois de cada queda, nos dá a força para dizer: «Agora recomeço, Senhor; mas convosco, não sozinho!»
Humilde Jesus,
as nossa quedas, tecidas de limitações e pecado,
ferem o orgulho do nosso coração,
fecham-no à graça da humildade
e embargam o caminho que nos leva ao vosso encontro.
Vinde, Espírito de Verdade,
libertai-nos de toda a pretensão de auto-suficiência
e concedei-nos reconhecer, em cada uma das nossas quedas,
um degrau da escada para subir até Vós!
[1] Exposição sobre o Salmo 127, 10.
Todos:
Pater noster, qui es in cælis;
sanctificetur nomen tuum;
adveniat regnum tuum;
fiat voluntas tua, sicut in cælo et in terra.
Panem nostrum cotidianum da nobis hodie;
et dimitte nobis debita nostra,
sicut et nos dimittimus debitoribus nostris;
et ne nos inducas in tentationem;
sed libera nos a malo.
O quam tristis et afflicta
fuit illa benedicta

Mater Unigeniti!
QUARTA ESTAÇÃO
Jesus encontra sua Mãe
 
Junto à Cruz de Jesus, a Mãe «está»:
 esta é a sua oração e a sua maternidade
V/. Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi.
R/.
 Quia per sanctam Crucem tuam redemisti mundum.
Do Evangelho segundo João 19, 25-27
Junto à cruz de Jesus estavam, de pé, sua mãe e a irmã da sua mãe, Maria, a mulher de Clopas, e Maria Madalena. Então, Jesus, ao ver ali ao pé a sua mãe e o discípulo que Ele amava, disse à mãe: «Mulher, eis o teu filho!» Depois, disse ao discípulo: «Eis a tua mãe!» E, desde aquela hora, o discípulo acolheu-a como sua.
São João refere o facto de a Mãe estar junto à Cruz de Jesus, mas nenhum evangelista nos fala directamente de um encontro entre ambos.
Na realidade, é neste «estar da Mãe» que se concentra a expressão mais densa e alta do encontro. No aparente estatismo do verbo estar, vibra a íntima vitalidade de um dinamismo.
É o dinamismo intenso da oração, que se conjuga com a sua pacata passividade. Rezar é deixar-se envolver pelo olhar amoroso e veraz de Deus, que nos revela a nós mesmos e nos envia para a missão.
Na oração autêntica, o encontro pessoal com Jesus torna mãe e discípulo amado, gera vida e transmite amor. Dilata o espaço interior do acolhimento e tece místicos laços de comunhão, confiando-nos um ao outro e abrindo o tu ao nós da Igreja.
Humilde Jesus,
quando as adversidades e as injustiças da vida,
o sofrimento inocente e a sinistra violência
nos fazem invectivar contra Vós,
Vós convidais-nos a estar, como vossa Mãe, aos pés da Cruz.
Quando as nossas expectativas e as nossas iniciativas,
desprovidas de futuro ou marcadas pela falência,
nos levam a evadir no desespero,
Vós chamais-nos à força da esperança.
Verdadeiramente tínhamos esquecido
a força deste estar como expressão do rezar!
Vinde, Espírito de Verdade,
sede Vós o «grito do nosso coração»[1],
que, incessante e inexprimível,
está
 confiante na presença de Deus!
[1] Cf. Exposição sobre o Salmo 118, d. 29, 1.
Todos:
Pater noster, qui es in cælis;
sanctificetur nomen tuum;
adveniat regnum tuum;
fiat voluntas tua, sicut in cælo et in terra.
Panem nostrum cotidianum da nobis hodie;
et dimitte nobis debita nostra,
sicut et nos dimittimus debitoribus nostris;
et ne nos inducas in tentationem;
sed libera nos a malo.
Quæ mærebat et dolebat,
pia Mater, dum videbat

Nati pœnas incliti.
QUINTA ESTAÇÃO
Jesus é ajudado por Simão Cireneu a levar a Cruz
Jesus aprende a obediência de amor,
ao longo do caminho da Paixão
V/. Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi.
R/. Quia per sanctam Crucem tuam redemisti mundum.
Do Evangelho segundo Lucas 23, 26
Quando O iam conduzindo, lançaram mão de um certo Simão de Cirene, que voltava do campo, e carregaram-no com a cruz, para a levar atrás de Jesus.
Simão de Cirene é um homem cujo retrato nos é dado pelos evangelistas com particular precisão de nome e proveniência, família e actividade; é um homem fotografado num lugar e tempo determinados, e de certo modo constrangido a levar uma cruz que não é sua. Na realidade, Simão de Cirene é cada um de nós. Recebe o madeiro da Cruz de Cristo, como um dia nós recebemos e acolhemos o seu sinal no santo Baptismo.
A vida do discípulo de Jesus é esta obediência ao sinal da Cruz, num gesto cada vez mais caracterizado pela liberdade do amor. É o reflexo da obediência do seu Mestre. É deixar-se, com pleno abandono, instruir como Ele pela geometria do amor[1], pelas próprias dimensões da Cruz: «a largura das obras de bondade; o comprimento da perseverança nas adversidades; aaltura da expectativa que aguarda e sonha alto; a profundidade da raiz da graça que penetra na gratuidade»[2].
Humilde Jesus,
quando a vida nos apresenta um cálice amargo e difícil de beber,
a nossa natureza fecha-se, protesta,
não ousa deixar-se atrair pela loucura
daquele amor maior que faz da renúncia alegria,
da obediência liberdade,
do sacrifício dilatação do coração!
Vinde, Espírito de Verdade,
tornai-nos obedientes à visita da Cruz,
dóceis ao seu sinal que abraça tudo em nós:
«corpo e alma, pensamentos e vontade,
mente e sentimento, agir e sofrer»[3],
e tudo dilata à medida do amor!
[1] Cf. Ef 3, 18.
[2] Cf. Carta 140, 26, 64.
[3] Cf. R. Guardini, O Espírito da Liturgia. Os Sinais Sagrados, Brescia 2000, p. 126.

Todos:
Pater noster, qui es in cælis;
sanctificetur nomen tuum;
adveniat regnum tuum;
fiat voluntas tua, sicut in cælo et in terra.
Panem nostrum cotidianum da nobis hodie;
et dimitte nobis debita nostra,
sicut et nos dimittimus debitoribus nostris;
et ne nos inducas in tentationem;
sed libera nos a malo.
Quis est homo qui non fleret,
Matrem Christi si videret
in tanto supplicio?
SEXTA ESTAÇÃO
A Verônica limpa o rosto de Jesus
Jesus não olha à aparência.
Jesus vê o coração
V/. Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi.
R/. Quia per sanctam Crucem tuam redemisti mundum.
Da Segunda Carta aos Coríntios do Apóstolo São Paulo 4, 6
O Deus que disse: «Das trevas brilhe a luz», foi quem brilhou nos nossos corações, para irradiar o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de Cristo.
Ao longo do Caminho da Cruz, a piedade popular regista o gesto de uma mulher, denso de delicadeza e veneração, como que um rasto do perfume de Betânia: Verónica limpa o rosto de Jesus. Naquele Rosto, desfigurado pelo sofrimento, Verónica reconhece o Rosto transfigurado pela glória; na fisionomia do Servo sofredor, ela vê o mais Belo dos filhos dos homens. Este é o olhar que suscita o gesto gratuito da ternura e recebe, em recompensa, a efígie do Rosto Sagrado! Verónica ensina-nos o segredo do seu olhar de mulher, «que vai ao encontro do outro e lhe serve de ajuda: ver com o coração[1].
Humilde Jesus,
o nosso é um olhar incapaz de ir mais além:
mais além
 da indigência, para reconhecer a vossa presença,
mais além
 da sombra do pecado,
para vislumbrar o sol da vossa misericórdia,
mais além
 das rugas da Igreja, para contemplar o rosto da Mãe.
Vinde, Espírito de Verdade,
deitai nos nossos olhos «o colírio da fé»[2]
para que não se deixem atrair pela aparência das coisas visíveis,
mas aprendam a fascinação das invisíveis.
[1] Cf. João Paulo II, Carta a  vós, mulheres, n. 12.
[2] Comentário ao Evangelho de João 34, 9.

Todos:
Pater noster, qui es in cælis;
sanctificetur nomen tuum;
adveniat regnum tuum;
fiat voluntas tua, sicut in cælo et in terra.
Panem nostrum cotidianum da nobis hodie;
et dimitte nobis debita nostra,
sicut et nos dimittimus debitoribus nostris;
et ne nos inducas in tentationem;
sed libera nos a malo.
Quis non posset contristari,
piam Matrem contemplari 

dolentem cum Filio?
SÉTIMA ESTAÇÃO
Jesus cai pela segunda vez
Jesus não dá mostras de força,
mas ensina a paciência
[1]
V/. Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi.
R/.
 Quia per sanctam Crucem tuam redemisti mundum.
Da Primeira Carta do Apóstolo São Pedro 2, 21b-24
Cristo padeceu por vós, deixando-vos o exemplo, para que sigais os seus passos. Ele não cometeu pecado nem na sua boca se encontrou engano; ao ser insultado, não respondia com insultos; ao ser maltratado, não ameaçava, mas entregava-Se Àquele que julga com justiça; subindo ao madeiro, Ele levou os nossos pecados no seu corpo, para que, mortos para o pecado, vivamos para a justiça: pelas suas chagas fostes curados.
Jesus cai de novo sob o peso da Cruz. Sobre o madeiro da nossa salvação pesam não só as enfermidades da natureza humana, mas também as adversidades da vida. Jesus carregou o peso da perseguição contra a Igreja de ontem e de hoje, a perseguição que mata os cristãos em nome de um deus alheio ao amor e a que mina a sua dignidade com «lábios mentirosos e palavras arrogantes»[2]. Jesus carregou o peso da perseguição contra Pedro, aquela contra a voz clara da «verdade que interpela e liberta o coração»[3]. Jesus, com a sua Cruz, carregou o peso da perseguição contra o seus servos e discípulos, contra aqueles que respondem ao ódio com o amor, à violência com a mansidão. Com a sua Cruz, Jesus carregou o peso daquele exagerado «amor de nós mesmos que chega ao desprezo de Deus»[4] e espezinha o irmão. Tudo carregou voluntariamente, tudo sofreu «com a sua paciência, para dar uma lição à nossa paciência»[5].
Humilde Jesus,
nas injustiças e adversidades desta vida,
não resistimos com paciência.
Muitas vezes imploramos, como sinal da vossa força,
que nos livreis do peso do madeiro da nossa cruz.
Vinde, Espírito de Verdade,
ensinai-nos a caminhar segundo o exemplo de Cristo
para «realizar os seus importantes preceitos de paciência
com as atitudes do coração»[6]!
[1] Cf. Exposição sobre o Salmo 40, 13.
[2] Cf. Sal 11(12), 4.
[3] Cf. Bento XVI, O elogio da consciência. A verdade interpela o coração, Sena 2009.
[4] A Cidade de Deus 14, 28.
[5] Discurso 175, 3, 3.
[6] Comentário ao Evangelho de João 113, 4.

Todos:
Pater noster, qui es in cælis;
sanctificetur nomen tuum;
adveniat regnum tuum;
fiat voluntas tua, sicut in cælo et in terra.
Panem nostrum cotidianum da nobis hodie;
et dimitte nobis debita nostra,
sicut et nos dimittimus debitoribus nostris;
et ne nos inducas in tentationem;
sed libera nos a malo.
Pro peccatis suae gentis
vidit Iesum in tormentis
et flagellis subditum.
OITAVA ESTAÇÃO
Jesus encontra as mulheres de Jerusalém
que choram por Ele
 
Jesus fixa em nós o olhar e suscita o pranto da conversão
V/. Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi.
R/.
 Quia per sanctam Crucem tuam redemisti mundum.
Do Evangelho segundo Lucas 23, 27-31
Seguiam Jesus uma grande multidão de povo e umas mulheres que batiam no peito e se lamentavam por Ele. Jesus voltou-Se para elas e disse-lhes: «Filhas de Jerusalém, não choreis por Mim, chorai antes por vós mesmas e pelos vossos filhos; pois virão dias em que se dirá: “Felizes as estéreis, os ventres que não geraram e os peitos que não amamentaram”. Hão-de, então, dizer aos montes: “Caí sobre nós!” E às colinas: “Cobri-nos!” Porque, se tratam assim a madeira verde, o que não acontecerá à seca?».
Jesus Mestre, ao longo do Caminho do Calvário, continua a instruir a nossa humanidade. Com o seu olhar de verdade e misericórdia, ao encontrar as mulheres de Jerusalém, recolhe as lágrimas de compaixão derramadas por Ele. Ele, o Deus que chorou e Se lamentou sobre Jerusalém[1], educa agora o pranto daquelas mulheres para que não fique estéril lamentação externa. Convida-as a reconhecerem n’Ele a sorte do Inocente injustamente condenado e queimado, como madeira verde, pelo «castigo que nos salva»[2]. Ajuda-as a interrogarem amadeira seca do próprio coração para sentirem a dor benéfica da compunção.
Aqui brota o pranto autêntico, quando os olhos confessam com as lágrimas não só o pecado, mas também a dor do coração. São lágrimas abençoadas, como as de Pedro, sinal de arrependimento e penhor de conversão, que renovam em nós a graça do Baptismo.
Humilde Jesus,
no vosso corpo sofredor e maltratado
insultado e escarnecido,
não sabemos reconhecer
as feridas das nossas infidelidades e das nossas ambições,
das nossas traições e das nossas rebeldias.
São feridas que clamam
e invocam o bálsamo da nossa conversão,
quando hoje já não sabemos chorar pelos nossos pecados.
Vinde, Espírito de Verdade,
mandai sobre nós o dom da Sabedoria!
Na luz do Amor que salva,
dai-nos o conhecimento da nossa miséria,
«as lágrimas que dissolvem a culpa,
o pranto que merece o perdão»[3]!
[1] Cf. Lc 19, 41.
[2] Is 53, 5.
[3] Cf. S. Ambrósio, Exposição do Evangelho segundo Lucas 10, 90.

Todos:
Pater noster, qui es in cælis;
sanctificetur nomen tuum;
adveniat regnum tuum;
fiat voluntas tua, sicut in cælo et in terra.
Panem nostrum cotidianum da nobis hodie;
et dimitte nobis debita nostra,
sicut et nos dimittimus debitoribus nostris;
et ne nos inducas in tentationem;
sed libera nos a malo.
Eia, Mater, fons amoris,
me sentire vim doloris
fac, ut tecum lugeam.
NONA ESTAÇÃO
Jesus cai pela terceira vez
 
Jesus, com a sua debilidade,
torna forte a nossa debilidade
V/. Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi.
R/. Quia per sanctam Crucem tuam redemisti mundum.
Do Evangelho segundo Lucas 22, 28-30a.31-32
«Vós sois os que permaneceram sempre junto de Mim nas minhas provações, e Eu disponho do Reino a vosso favor, como meu Pai dispõe dele a meu favor, a fim de que comais e bebais à minha mesa, no meu Reino. (…). Simão, Simão, olha que Satanás pediu para vos joeirar como trigo. Mas Eu roguei por ti, para que a tua fé não desapareça. E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos».
Com a sua terceira queda, Jesus confessa com quanto amor abraçou, por nós, o peso da provação e renova o chamamento para O seguirmos até ao fim na fidelidade. Mas permite-nos também lançar um olhar para além do véu da promessa: «Se nos mantivermos firmes, reinaremos com Ele»[1].
As suas quedas pertencem ao mistério da sua Encarnação. Procurou-nos na nossa debilidade, descendo até ao fundo da mesma para nos elevar até Ele. «Mostrou-nos em Si mesmo o caminho da humildade, para nos abrir o caminho do regresso»[2]. «Ensinou-nos a paciência como arma para vencer o mundo»[3]. Agora, caído no chão pela terceira vez, enquanto «Se com-padece das nossas fraquezas»[4], indica-nos o modo para não sucumbir na provação: perseverar, permanecer firmes e inabaláveis. Simplesmente: «permanecer n’Ele»[5]
Humilde Jesus,
diante das provações que põem à prova a nossa fé
sentimo-nos desolados:
ainda não acreditamos que estas nossas provações
já foram as Vossase que Vós nos convidais simplesmente
a vivê-las convosco.
Vinde, Espírito de Verdade,
nas quedas que assinalam o nosso caminho,
ensinai-nos a apoiar-nos na fidelidade de Jesus,
a crer na sua oração por nós,
para acolher aquela corrente de força
que só Ele, o Deus-connosco, nos pode dar!
[1] 2 Tm 2, 12.
[2] Cf. Discurso 50, 11.
[3] Cf. Comentário ao Evangelho de João 113, 4.
[4] Heb 4, 15.
[5] Cf. Jo 15, 7.

Todos:
Pater noster, qui es in cælis;
sanctificetur nomen tuum;
adveniat regnum tuum;
fiat voluntas tua, sicut in cælo et in terra.
Panem nostrum cotidianum da nobis hodie;
et dimitte nobis debita nostra,
sicut et nos dimittimus debitoribus nostris;
et ne nos inducas in tentationem;
sed libera nos a malo.
Fac ut ardeat cor meum
in amando Christum Deum,
ut sibi complaceam.
DÉCIMA ESTAÇÃO
Jesus é despojado das suas vestes
Jesus fica nu, para nos revestir com a veste de filhos
V/. Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi.
R/.   Quia per sanctam Crucem tuam redemisti mundum.
Do Evangelho segundo João 19, 23-24
Os soldados, depois (…) pegaram na roupa de Jesus e fizeram quatro partes, uma para cada soldado, excepto a túnica. A túnica, toda tecida de uma só peça de alto a baixo, não tinha costuras. Então, os soldados disseram uns aos outros: «Não a rasguemos; tiremo-la à sorte, para ver a quem tocará». Assim se cumpriu a Escritura, que diz: Repartiram entre eles as minhas vestes e sobre a minha túnica lançaram sortes. E foi isto o que fizeram os soldados.
Jesus fica nu. A imagem de Jesus despojado das vestes é rica de ressonâncias bíblicas: leva-nos até à nudez inocente das origens e à vergonha da queda[1].
Na inocência original, a nudez era a veste gloriosa do homem: a sua amizade cristalina e bela com Deus. Com a queda, a harmonia de tal relação rompe-se, a nudez causa vergonha e traz consigo a lembrança dramática daquela perda.
Nudez é sinónimo de verdade do ser.
Despojado das suas vetes, Jesus tece, a partir da Cruz, o vestido novo da dignidade filial do homem. Aquela túnica sem costuras permanece ali, íntegra, para nós: a veste da sua filiação divina não se rompeu, mas é-nos dada do alto da Cruz.
Humilde Jesus,
diante da vossa nudez,
descobrimos o essencial
da nossa vida e da nossa alegria:
sermos, em Vós, filhos do Pai.
Mas confessamos também a resistência sentida
ao abraçar a pobreza como dependência do Pai
e ao acolher a nudez como vestido filial.
Vinde, Espírito de Verdade,
ajudai-nos a reconhecer e bendizer, em cada despojamento que sofremos,
um encontro com a verdade do nosso ser,
um encontro com a nudez redentora do Salvador,
um trampolim de salto para o abraço filial com o Pai!
[1] Gen 2, 25; 3, 7.
Todos:
Pater noster, qui es in cælis;
sanctificetur nomen tuum;
adveniat regnum tuum;
fiat voluntas tua, sicut in cælo et in terra.
Panem nostrum cotidianum da nobis hodie;
et dimitte nobis debita nostra,
sicut et nos dimittimus debitoribus nostris;
et ne nos inducas in tentationem;
sed libera nos a malo.
Sancta Mater, istud agas,
Crucifixi fige plagas

cordi meo valide.
DÉCIMA PRIMEIRA ESTAÇÃO
Jesus é pregado na Cruz
Elevado da terra, Jesus atrai todos a Si
V/. Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi.
R/. Quia per sanctam Crucem tuam redemisti mundum.
Do Evangelho segundo João 19, 18-22
Lá O crucificaram, e com Ele outros dois, um de cada lado, ficando Jesus no meio. Pilatos redigiu um letreiro e mandou pô-lo sobre a cruz. Dizia: «Jesus Nazareno, Rei dos Judeus». Este letreiro foi lido por muitos judeus, porque o lugar onde Jesus tinha sido crucificado era perto da cidade e o letreiro estava escrito em hebraico, em latim e em grego. Então, os sumos sacerdotes dos judeus disseram a Pilatos: «Não escrevas “Rei dos Judeus”, mas sim: “Este homem afirmou: Eu sou Rei dos Judeus”». Pilatos respondeu: «O que escrevi, escrevi».
Jesus crucificado está no centro; a inscrição real, lá no alto da Cruz, desvenda as profundidades do mistério: Jesus é o Rei, e a Cruz o seu trono. A realeza de Jesus, escrita em três línguas, é uma mensagem universal: para o simples e o sábio, para o pobre e o poderoso, para quem se abandona à Lei divina e para quem confia no poder político. A imagem do Crucificado, que nenhuma sentença humana poderá jamais remover das paredes do nosso coração, permanecerá para sempre a Palavra real da Verdade: «Luz crucificada que ilumina os cegos»[1], «tesouro oculto que só a oração pode descerrar»[2], coração do mundo.
Jesus não reina dominando com um poder deste mundo, Ele «não dispõe de nenhuma legião»[3]. «Jesus reina, atraindo»[4]: o seu íman é o amor do Pai que n’Ele se entrega por nós «até ao fim sem confins»[5]. «Nada escapa ao seu calor»[6]!
Senhor Jesus, crucificado por nós!
Vós sois a confissão
do grande amor do Pai pela humanidade,
o ícone da única verdade credível.
Atraí-nos a Vós,
para aprendermos a viver
«por amor do vosso amor»[7].
Vinde, Espírito de Verdade,
ajudai-nos a preferir sempre «Deus e a sua vontade
aos interesses do mundo e às suas potências,
para descobrirmos na impotência externa do Crucificado
a força incessante da verdade»[8].
[1] Cf. Discurso 136, 4.
[2] Cf. Discurso 160, 3.
[3] Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré: Da Entrada em Jerusalém até à Ressurreição, Cidade do Vaticano 2011, p. 157.
[4] Cf. Jo 12, 32.
[5] H. U. von Balthasar, Vós coroais o ano com a vossa graça, Milão 1990, p. 188.
[6] Sal 18 (19), 7.
[7] Confissões 2, 1, 1.
[8] Cf. Joseph Ratzinger/Bento XVI, obra citada, pp. 159-160.

Todos:
Pater noster, qui es in cælis;
sanctificetur nomen tuum;
adveniat regnum tuum;
fiat voluntas tua, sicut in cælo et in terra.
Panem nostrum cotidianum da nobis hodie;
et dimitte nobis debita nostra,
sicut et nos dimittimus debitoribus nostris;
et ne nos inducas in tentationem;
sed libera nos a malo.
Tui Nati vulnerati,
tam dignati pro me pati
poenas mecum divide.
DÉCIMA SEGUNDA ESTAÇÃO
Jesus morre na Cruz
Jesus vive a sua morte
como dom de amor
V/. Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi.
R/. Quia per sanctam Crucem tuam redemisti mundum.
Do Evangelho segundo João 19, 28-30
Jesus, sabendo que tudo se consumara, para se cumprir totalmente a Escritura, disse: «Tenho sede!» Havia ali uma vasilha cheia de vinagre. Então, ensopando no vinagre uma esponja fixada num ramo de hissopo, chegaram-Lha à boca. Quando tomou o vinagre, Jesus disse: «Tudo está consumado». E, inclinando a cabeça, entregou o espírito.
«Tenho sede». «Tudo está consumado». Nestas duas frases, Jesus confia-nos, com um olhar voltado para a humanidade e outro para o Pai, o desejo ardente que envolveu a sua pessoa e a sua missão: o amor ao homem e a obediência ao Pai. Um amor horizontal e um amor vertical: eis o desenho da Cruz! E do ponto de encontro deste duplo amor, lá onde Jesus inclina a cabeça, brota o Espírito Santo, primeiro fruto do seu regresso ao Pai.
Neste sopro vital da consumação, vibra a lembrança da obra da criação[1] agora redimida; mas vibra também o apelo a todos nós, crentes n’Ele, para «completarmos aquilo que falta, das tribulações de Cristo, na nossa carne»[2]. Até que tudo esteja consumado!
Senhor Jesus, morto por nós!
Vós pedis para dar,
morreis para entregar
e entretanto fazeis-nos descobrir no dom pessoal
o gesto que cria o espaço da unidade.
Perdoai o vinagre da nossa recusa e da nossa incredulidade,
perdoai a surdez do nosso coração
ao vosso grito de sede
que continua a elevar-se do sofrimento de tantos irmãos.
Vinde, Espírito Santo,
herança do Filho que morre por nós:
sede Vós a «guiar-nos para a verdade completa»[3]
e «a raiz que nos guarda unidos»[4]!
[1] Gen 2, 2.7.
[2] Cf. Col 1, 24.
[3] Cf. Jo 16, 13.
[4] Cf. Exposição sobre o Salmo 143, 3.

Todos:
Pater noster, qui es in cælis;
sanctificetur nomen tuum;
adveniat regnum tuum;
fiat voluntas tua, sicut in cælo et in terra.
Panem nostrum cotidianum da nobis hodie;
et dimitte nobis debita nostra,
sicut et nos dimittimus debitoribus nostris;
et ne nos inducas in tentationem;
sed libera nos a malo.
Vidit suum dulcem Natum
morientem desolatum, 
cum emisit spiritum.
DÉCIMA TERCEIRA ESTAÇÃO
Jesus é descido da Cruz
e entregue a sua Mãe
O corpo de Jesus é acolhido no abraço da Mãe
V/. Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi.
R/. Quia per sanctam Crucem tuam redemisti mundum.
Do Evangelho segundo João 19, 32-35.38
Os soldados foram e quebraram as pernas ao primeiro e também ao outro que tinha sido crucificado juntamente com Ele. Mas, ao chegarem a Jesus, vendo que já estava morto, não Lhe quebraram as pernas. Porém, um dos soldados traspassou-Lhe o peito com uma lança e logo brotou sangue e água. Aquele que viu estas coisas é que dá testemunho delas e o seu testemunho é verdadeiro. E ele bem sabe que diz a verdade, para vós crerdes também. (…) Depois disto, José de Arimateia, que era discípulo de Jesus, mas secretamente por medo das autoridades judaicas, pediu a Pilatos que lhe deixasse levar o corpo de Jesus. E Pilatos permitiu-lho. Veio, pois, e retirou o corpo.
A perfuração do peito de Jesus, de ferida tornou-se fresta, porta aberta para o coração de Deus. Aqui o seu amor infinito por nós deixa-se tomar como água que vivifica e bebida que invisivelmente sacia e faz renascer. Também nós nos aproximamos do corpo de Jesus descido da Cruz e sustentado pelos braços da Mãe. Aproximamo-nos «não caminhando, mas crendo, não com os passos do corpo, mas com a livre decisão do coração»[1]. Neste corpo inanimado, reconhecemo-nos como seus membros feridos e sofredores, mas guardados pelo abraço amoroso da Mãe. Mas reconhecemo-nos também nestes braços maternos, simultaneamente fortes e ternos.
Os braços abertos da Igreja-Mãe lembram o altar que nos oferece o Corpo de Cristo e aí, nós, tornamo-nos Corpo místico de Cristo.
Senhor Jesus,
entregue à Mãe, figura da Igreja-Mãe!
Diante do ícone de Nossa Senhora da Piedade
aprendemos a dedicação ao sim do amor,
o abandono e o acolhimento,
a confiança e a atenção concreta,
a ternura que cura a vida e suscita a alegria.
Vinde, Espírito Santo,
guiai-nos, como guiastes Maria,
na gratuidade irradiante do amor,
«derramado por Deus nos nossos corações
com o dom da vossa presença»[2]!
[1] Comentário ao Evangelho de João 26, 3.
[2] Cf. Rm 5, 5.

Todos:
Pater noster, qui es in cælis;
sanctificetur nomen tuum;
adveniat regnum tuum;
fiat voluntas tua, sicut in cælo et in terra.
Panem nostrum cotidianum da nobis hodie;
et dimitte nobis debita nostra,
sicut et nos dimittimus debitoribus nostris;
et ne nos inducas in tentationem;
sed libera nos a malo.
Fac me vere tecum flere,
Crucifixo condolere, 
donec ego vixero.
DÉCIMA QUARTA ESTAÇÃOJesus é depositado
no sepulcro
A terra do silêncio e da expectativa guarda Jesus,
semente fecunda de vida nova
V/. Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi.
R/.
 Quia per sanctam Crucem tuam redemisti mundum.
Do Evangelho segundo João 19, 40-42
Tomaram então o corpo de Jesus e envolveram-no em panos de linho com os perfumes, segundo o costume dos judeus. No sítio em que Ele tinha sido crucificado havia um jardim e, no jardim, um túmulo novo, onde ainda ninguém tinha sido sepultado. Como para os judeus era o dia da Preparação da Páscoa e o túmulo estava perto, foi ali que puseram Jesus.
Um jardim, símbolo da vida com as suas cores, acolhe o mistério do homem criado e redimido. Num jardim, Deus colocou a sua criatura[1] e de lá a expulsou depois da queda[2]. Num jardim, teve início a Paixão de Jesus[3] e, num jardim, um sepulcro novo acolhe o novo Adão que volta à terra[4], ventre materno que guarda a semente fecunda que morre.
É o tempo da fé que aguarda silenciosa, e da esperança que no ramo seco já vislumbra o despontar de um pequenino rebento, promessa de salvação e de alegria.
Agora a voz de «Deus fala no grande silêncio do coração»[5].
[1] Gen 2, 8.
[2] Gen 3, 23.
[3] Jo 18, 1.
[4] Jo 19, 41.
[5] Exposição sobre o Salmo 38, 20.
Todos:
Pater noster, qui es in cælis:
sanctificetur nomen tuum;
adveniat regnum tuum;
fiat voluntas tua, sicut in cælo, et in terra.
Panem nostrum cotidianum da nobis hodie;
et dimitte nobis debita nostra,
sicut et nos dimittimus debitoribus nostris;
et ne nos inducas in tentationem;
sed libera nos a malo.
Quando corpus morietur,
fac ut animæ donetur
paradisi gloria.
Amen.

DISCURSO DO SANTO PADRE
E BÊNÇÃO APOSTÓLICA
O Santo Padre dirige a palavra aos presentes.
No final do discurso, o Santo Padre dá a Bênção Apostólica:
V/. Dominus vobiscum.
R/. Et cum spiritu tuo.
V/. Sit nomen Domini benedictum.
R/. Ex hoc nunc et usque in sæculum.
V/. Adiutorium nostrum in nomine Domini.
R/. Qui fecit cælum et terram.
V/. Benedicat vos omnipotens Deus,
Pater et Filius et Spiritus Sanctus.
R./ Amen.
CÂNTICO
R. Crux fidelis, inter omnes arbor una nobilis,
Nulla talem silva profert, flore, fronde, germine!
Dulce lignum dulci clavo dulce pondus sustinens.

1. Pange, lingua, gloriosi proelium certaminis,
Et super Crucis trophaeo dic triumphum nobilem,
Qualiter Redemptor orbis immolatus vicerit. R.

2. De parentis protoplasti fraude factor condolens,
Quando pomi noxialis morte morsu corruit,

Ipse lignum tunc notavit, damma ligni ut solveret. R.

[Tradução oficial da Santa Sé
© Copyright 2011 - Libreria Editrice Vaticana]