Lê-se no livro de Deuteronômio: “[O Senhor] te fez passar fome e, depois, te alimentou com o maná que nem tu, nem teus pais conheciam, para te mostrar que não só de pão vive o ser humano, mas de tudo o que procede da boca do Senhor” (Dt 8,3).
Jesus retoma essas palavras, enquanto se encontra no deserto, atacado pela fome depois de 40 dias de jejum, e é tentado a recorrer ao milagre de transformar em pão as pedras que estavam diante dele. Mas, ao divisor, ele respondeu: “Está escrito: ‘Não se vive somente de pão, mas de toda palavra que sai da boca de Deus’” (Mt 4.4; cf Lc 4,4).
O pão necessário para viver, sem o qual vamos ao encontro da morte, não basta para fazer viver os seres humanos. É necessário algo mais do que pão, algo do qual o pão é apenas um sinal, algo que, como o pão, saiba trazer vida, mas uma vida outra com respeito à meramente biológica. O ser humano se humanizou no dia em que inventou e fez o pão, mas a sua humanização precisa de algo que transcenda o pão.
Há no ser humano, de fato, uma fome, um desejo, uma busca que não se detém no alimento: oalimento é absolutamente necessário, mas não é suficiente para que um ser humano se humanize. Cada um de nós, saiba ou não disso, por instinto, quer viver e, portanto, busca, ganha pão com o trabalho, mas isso não lhe basta: cada um busca um sentido na vida, porque é habitado por uma fome, a fome de se tornar ser humano.
A humanidade, essa condição de que cada um de nós vive e da qual é responsável, é uma condição de transição entre a animalidade e a humanidade verdadeira, e o caminho que somos chamados a percorrer é aquele jamais acabado da humanização.
O grande etólogo Konrad Lorenz afirmou que “o elo perdido entre o macaco e o homem somos nós”: cada um de nós é esse elo, porque a nossa tarefa é a de nos humanizar. O ser humano tem fome de se tornar aquilo que acredita ser, e esse caminho está em suas mãos, está entregue à sua liberdade, às suas fadigas individuais e coletivas, à sua responsabilidade. Tornar-se humano: essa é a grande tarefa que está diante de cada um de nós! O humanismo e o cristianismo convergem para esse objetivo. Essa busca de sentido, isto é:
- de orientação e direção (Aonde vou?);
- de significado (O que significa? Eu quero entender!);
- de ouvir o real (Como eu posso viver com plenitude com os cinco sentidos?);
Há um caminho, há opções decisivas para a humanização? Sim, existem muitos caminhos possíveis, mas há um elementar, que resume todos eles. Antes de falar a respeito como conclusão, eu gostaria, porém, de traçar alguns caminhos essenciais, algumas vias de humanização que o cristianismo sempre elaborou e afirmou, mas que o ser humano não munido da fé também soube indicar.
Acima de tudo, há o caminho da liberdade: a liberdade deve ser exercitada; ela não é mendigada nem pedida; ela deve ser exercitada e basta. É indigno do ser humano mendigar a liberdade! No cotidiano, o ser humano sempre pode praticá-la, porque há pelo menos uma ocasião por dia em que ele não é vil, preguiçoso, medroso, mas sim livre. Sabemos bem que o poder político, econômico, ideológico são tentados a espezinhar a liberdade, mas cabe a nós exercê-la diante de tais poderes.
Junto à liberdade, é preciso afirmar a igualdade, não o igualitarismo que desconsidera as diferenças, mas sim a igualdade que requer o reconhecimento dos direitos de cada pessoa e de cada comunidade. A democracia vive se há esse reconhecimento da igualdade de cada pessoa, de cada ser humano, pessoa como eu. O teu próximo é como tu mesmo – diz o mandamento retomado e cumprido por Jesus – e ao teu lado não há mais judeu nem grego (cf. Gal 3,28; Col 3,11), nem marroquino, nem indiano… mas apenas um homem, uma mulher como tu.
Além disso, há o caminho da fraternidade, isto é, da práxis de solidariedade que tece laços fraternos, a capacidade de viver o amor entre todos os seres humanos. Isso requer sair de si mesmo para encontrar o outro, para ouvi-lo, para conhecê-lo, para se comunicar com ele, para criar laços de afeto e de convivência. Esse é o caminho da humanização, que exige responsabilidade e compromisso por parte de cada um de nós: eis do que vive o ser humano, através do que ele se humaniza em profundidade.
No atual contexto social, permito-me, por fim, indicar a necessidade da resistência. Refiro-me à resistência civil, em vista do caminho de humanização, a um comportamento que requer o exercício de muitas responsabilidades: a responsabilidade ecológica, para combater o deserto que avança; a da afirmação da legalidade e da justiça, sem as quais são espezinhadas justamente a liberdade, a igualdade e a fraternidade; a da convivialidade – como definida por Ivan Illich – que significa participação de todos os seres humanos na mesa do mundo, nos recursos da terra; a da beleza, tarefa essencial para combater a feiura que nos invade. Sim, devemos afirmar e exercer o direito à resistência.
A propósito, gostaria de recordar as palavras de Giuseppe Dossetti, que, no dia 21 de novembro de 1946, como membro da assembleia constituinte [italiana], apresentou em comissão esta proposta de artigo: “A resistência individual e coletiva aos atos dos poderes públicos, que violem as liberdades fundamentais e os direitos garantidos pela presente Constituição, é direito e dever de cada cidadão”. Essa moção não foi aprovada, mas o que ela exprime ainda é de extrema atualidade.
Gostaria, por fim, de falar brevemente da mesa, o lugar do pão, o lugar essencial da humanização. À mesa, deveríamos convergir para comer como seres humanos, não como animais. Por isso, a mesa sempre foi percebida como o emblema da humanização, o lugar por excelência em que nos humanizamos ao longo da vida, desde que, quando pequenos, fomos admitidos à mesa ainda na “cadeirinha” até a velhice. Nessas duas fases extremas da vida, também estamos à mesa, talvez ajudados por outros, mas estamos para sempre à mesa.
O nosso estar à mesa diz a nossa liberdade: liberdade de filhos em família, liberdade de amigos que se convidam, liberdade de quem serve e qualidade senhoril de quem é servido. Mas, à mesa, também se experimenta a igualdade, uma igualdade ordenada: todos são chamados a comer com os mesmos direitos, velhos e crianças, adultos e jovens, todos podem tomar a palavra, perguntar e responder. À mesa, aprende-se a falar além de comer, aprende-se a ouvir e a intervir na convivialidade. Enfim, à mesa se confraterniza, se compartilha o pão entre companheiros, ou seja, pessoas que comem o mesmo pão, segundo a etimologia dessa palavra (cum-panis). A mesa tem um magistério decisivo para nós e para cada ser humano que vem ao mundo: somos conscientes disso?
À mesa, aprende-se e se verifica que não só de pão que vive o ser humano, porque, quando pequenos, precisamos que alguém nos dê de comer; quando adultos, de alguém que nos prepara o alimento com amor e, com o alimento, expresse o seu amor; precisamos dar graças e entender que o que comemos não é apenas a união de natureza e cultura, mas também é dom que nos é dado.
É à mesa que celebramos o nascimento, o amor nas núpcias, os eventos que nos tornam felizes e que dão sentido à nossa vida. À mesa, nos exercitamos, ou melhor, deveríamos nos exercitar para compartilhar e para fazer da própria mesa um lugar em que acolhemos e convidamos o outro. A mesa jamais é para um só; é para o outro, para os outros, para a fraternidade, o amor, a humanização: e o pão impera sobre ela para ser despedaçado e compartilhado, para nutrir e para nos lembrar que não só de pão vive o ser humano.
Por Enzo Bianchi