quinta-feira, 20 de maio de 2010

Relativismo - Parte V

3. Como diante dele se situa a Igreja?

Responderemos em duas etapas

3.1. A Igreja não é fundamentalista

O fundamentalismo é uma atitude que teve origem no ambiente protestante dos Estado Unidos na segunda metade do século XIX: apega-se ferrenhamente a certas proposições da Bíblia e não permite que sejam estudadas à luz das pesquisas lingüísticas e arqueológicas modernas, pois a ciência poria em perigo a fé. Portanto professa a criação do mundo em seis dias de 24 horas; Moisés seria o autor do Pentateuco tal como chegou até nós; o livro de Daniel terá sido escrito por inteiro nos tempos de Nabucodonosor (século VI a.C.)... O mundo moderno é dominado por Satanás, que Jesus derrotará definitivamente quando vier (e talvez venha em breve) a julgar os homens.

Fundamentalista é, por exemplo, a atitude do Islã, que propõe:

1) o Corão é livro divinamente inspirado e deve ser entendido ao pé da letra;

2) o Islã deve reger as leis do Estado, pois todos devem conformar-se aos preceitos de Alá.

O fundamentalismo, aliás, também penetrou em outras correntes religiosas, como o Judaísmo e o próprio Cristianismo (em alguns de seus setores).

Há também o fundamentalismo leigo, não religioso, principalmente no campo da política, quando se procura impor à sociedade o fanatismo de um chefe “carismático” e tirânico.

Pois bem; a Igreja não é fundamentalista. Ela aceita e promove os estudos bíblicos voltados para a lingüística, à arqueologia, a paleontologia... Professa que a Bíblia é inspirada por Deus, que utilizou formas de pensamento antigo e oriental para se revelar. A Igreja reconhece que, fora dela, existem valores suscitados pelo próprio Deus ou, como diziam os Padres da Igreja, existem “sementes do Verbo” (logoi spermatikói); cf. Declaração Nostra Aetate nº 2 do Concílio do Vaticano II. Professa outrossim a liberdade religiosa ou o direito que todo ser humano tem de estudar livremente a questão religiosa e viver de acordo com suas conclusões sem ser coagido a abraçar algum Credo que violente a sua consciência, nem adotar o ateísmo; ver Declaração Dignitatis Humanae do Concílio:

“2. Este Concílio Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Consiste tal liberdade em que todos os homens devem ser imunes de coação, tanto por parte de pessoas particulares, quanto de grupos sociais e de qualquer poder humano, de tal modo que, em matéria religiosa [in re religiosa], ninguém seja obrigado a agir contra a própria consciência, nem seja impedido de agir de acordo com ela, em particular e em público, nem só ou associado a outros, dentro dos devidos limites.

Declara, além disso, que o direito à liberdade religiosa está realmente fundado na própria dignidade da pessoa humana, tal como é conhecida tanto pela palavra revelada de Deus como pela própria razão. Este direito da pessoa humana à liberdade religiosa deve ser de tal forma reconhecido no ordenamento jurídico da sociedade que se transforme em direito civil”.

Para evitar mal-entendidos, seja dito: o Concílio apregoa a liberdade para pesquisar o problema religioso. Essa pesquisa, porém, é obrigatória, pois se trata de dar sentido à vida; se Deus existe, o rumo é um; se não existe, o rumo é outro. Ninguém está autorizado a fugir dessa pergunta: Deus existe? ...Mas pesquise sem sofrer coação.

Há portanto um meio-termo entre o fanatismo cego fundamentalista e o relativismo. Quem não é relativista, não é necessariamente fanático.

3.2. A Igreja professa a Verdade Absoluta

A inteligência humana foi feita para a Verdade e não para a penumbra das semi-verdades ou do erro. O homem aspira naturalmente à Verdade; esta aspiração congênita não pode ser frustrada num mundo em que as demandas têm sua resposta; com efeito

- para o olho, há a luz para a qual ele foi feito.

- para o ouvido, há o som.

- para os pulmões, há o ar.

- para o estômago, há o alimento.

Não haveria então resposta para as aspirações mais elevadas do ser humano à Verdade e ao Bem?

A Igreja sabe que a Palavra de Deus revela com veracidade quem é Deus e qual o seu plano de salvação. Fora das verdades da fé, julga que o homem, pesquisando através de altos e baixos, pode chegar ao conhecimento da Verdade Absoluta.

O fato, porém, de professar a Verdade Absoluta não deve tornar o fiel católico cego e fanático. Sim; muitos seres humanos podem estar professando o erro, julgando que o erro é a verdade; estão de boa fé numa fé (ou religião) errônea. Deus não lhes pedirá contas daquilo que Ele não lhes revelou, mas há de julgá-los de acordo com os ditames da sua consciência que, sincera e candidamente, os impelia ao erro.

É o que ensina o Concílio do Vaticano II em Lumen Gentium nº 16.

“O Salvador quer que todos os homens sejam salvos. Aqueles portanto que sem culpa ignoram o Evangelho de Cristo e sua Igreja, mas de coração sincero buscam a Deus e se esforçam, com o auxílio da graça, por cumprirem com obras a sua vontade conhecida pela voz da consciência, também esses podem alcançar a salvação eterna. A Divina Providência não recusa os meios necessários para a salvação àqueles que, sem culpa, ainda não chegaram ao conhecimento explícito de Deus, mas procuram com a graça divina viver retamente”.

Há um só Deus para todos os homens; Ele distribui suas luzes sobre todo indivíduo como lhe apraz e não pede mais do que a justa resposta da criatura à Palavra que o Senhor lhe comunica.

Ao proclamar a verdade absoluta, a Igreja não ignora a influência, às vezes prejudicial, das culturas na formulação dos juízos religiosos e éticos de cada indivíduo, mas os católicos crêem que esses possíveis obstáculos e desvios podem ser corrigidos pela insistência de quem procura sinceramente.


Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, Osb.
Nº 531, Ano 2006, Página 394