terça-feira, 23 de agosto de 2011

A Igreja anula casamento?


Publicamos  entrevista com Pe. Antônio Robson Gonçalves, MSJ, Mestre em Direito Canônico pelo Instituto de Direito Canônico «Pe. Dr. Giuseppe Benito Pegoraro», afiliado à Pontifícia Universidade Lateranense de Roma, e Juiz do Tribunal Eclesiástico Interdiocesano de São Paulo.
Tendo em vista que esse é um tema que gera grande curiosidade, gostaria que o senhor explicasse, primeiramente, a diferença entre «anular» e «declarar a nulidade».
Veja só, é importante levar em conta que a Igreja Católica Apostólica Romana nunca anula um casamento. Anular significaria tornar sem efeito a partir daquele momento o casamento. Seria o mesmo que dizer que até determinada data o casamento foi válido e a partir daquela outra, não valeria mais.
O Casamento é e sempre foi considerado pela Igreja Católica apostólica Romana como uno e indissolúvel. Quer dizer, em hipótese alguma a Igreja Católica aceita o Divórcio como alternativa válida para seus fiéis.
Não obstante a isso, sabemos que alguns casamentos não dão certo e são muitas as razões pelas quais fracassam (não vem ao caso aqui analisar cada uma destas razões). Dentre estes casamentos fracassados alguns certamente fracassaram porque foram nulos, quer dizer, apesar de toda a aparência sacramental (cerimônia, ritos e etc.) não são sacramentos de fato. Quer dizer, nunca valeram de fato, porque faltou algo de essencial para que aquele casamento, independentemente do número de anos que durou fosse realmente válido ou seja, fosse sacramento. Quando ocorre esta situação é que a Igreja, através do Tribunal Eclesiástico declara a nulidade daquele determinado casamento.
O Matrimônio goza do favor do Direito, isto é, a presunção é sempre pela validade, mas, para que seja válido o matrimônio é necessária a ausência de três capítulos ou causas que podem tornar nulo um matrimonio.
São estes:
1) a presença de impedimentos canônicos que são 12 no total:  Afinidade (can. 1092); Consangüinidade (can. 1091); Parentesco Legal (can). 1094); Pública Honestidade (can. 1093); Crime de Conjugicidio (can. 1090); Disparidade de Culto (um católico e outro não batizado não cristão ou batizado invalidamente) é importante não confundir disparidade de culto com mista religião (um cristão católico e um cristão não católico) não é impedimento, nesse caso não se pede dispensa, mas, licença ao ordinário do lugar (can 1124); Idade (can. 1083) ; Impotência (Can. 1098); Ordem Sacra ( can. 1087); Votos Religiosos (can. 1088); Rapto (can. 1089); Vínculo Anterior (can. 1085);
Estes são os impedimentos que tornam a pessoa inábil para contrair núpcias na Igreja Católica Apostólica Romana. Quem está impedido só pode se casar mediante a Licença do Bispo Diocesano ou conforme o caso somente com a Licença da Santa Sé Apostólica (Vaticano);
2) defeito (ou vício) de consentimento, ou seja, o consentimento foi viciado, não foi livre, consciente.
Na maioria das vezes podem ocorrer as seguintes situações:
a) Incapacidade Can 1095:
1º. Falta do uso da razão;
2º. Grave falta da Discrição de juízo acerca dos ônus essenciais do matrimonio (por exemplo, a imaturidade humana e psicológica);
3º. Causas de natureza psíquica.
b) exclusão total ou parcial do bem da comunhão de vida e de amor (cânones 1057 § 2 e 1101§ 2);
c) Condição ( Can. 1102);
d) Dolo (Can. 1098)
e)Erro de pessoa (Can. 1097);
f) Erro nas propriedades essenciais do matrimonio (can. 1099);
g) Medo e/ou temor reverencial  ou violência  (Can. 1103);
3) a falta da forma canônica, ou seja, a ausência de um ou mais dos seguintes elementos:  A manifestação por parte dos contraentes do seu Consentimento (Eu……..te recebo…….por meu marido ou por minha esposa e te prometo ser fiel….amar-te, respeitar-te …..na alegria e na tristeza…..) diante da Testemunha Qualificada (Bispo Diocesano, Pároco ou outro sacerdote ou diácono por estes delegados para aquele casamento) e diante de pelo menos duas testemunhas fidedignas. Isso se faz necessário porque o matrimonio enquanto negócio jurídico exige a existência destes  três elementos que são essenciais para sua validade contratual: a capacidade jurídica, o válido consentimento livre e espontaneamente manifesto e a forma canônica estabelecida pela Igreja.
Qualquer situação que se enquadre nestes elementos pode servir de base para o processo de verificação da nulidade matrimonial. É bom lembrar que os cônjuges têm o direito de impugnar (questionar) a validade de seu matrimônio junto ao tribunal Eclesiástico. Além deles também o Promotor de Justiça Eclesiástica pode fazê-lo nas causas de maior gravidade, principalmente quando há riscos de escândalo público.
O objeto do juízo, nas causas de nulidade será sempre o consentimento, pois, segundo a máxima jurídica ” consensus facit nuptia” é o consentimento que gera o vínculo matrimonial. Os juízes analisarão se no momento exato (por isso mesmo, antecedente e concomitantemente) de externar o consentimento um ou ambos os cônjuges o fizeram validamente ou de forma defeituosa.
Quais os procedimentos para instaurar uma Causa de Nulidade junto ao Tribunal Eclesiástico?

Geralmente a parte interessada deve comparecer ao Tribunal Eclesiástico e passar por uma Consulta com o Vigário Judicial (que é o sacerdote encarregado de presidir o tribunal)  que, após ouvi-la vai informar todos os detalhes para o encaminhamento do processo. Na consulta a pessoa interessada receberá uma lista com todos os documentos necessários e um esquema para elaborar o seu histórico onde vai contar com detalhes os fatos ocorridos desde o momento em que as partes se conheceram, quando iniciaram o namoro, como este se desenvolveu, se havia brigas, desentendimentos, quais as dificuldades foram surgindo, como resolveram estes problemas iniciais, se houve gravidez indesejada, como se deu o noivado, quanto tempo durou, como foi o relacionamento de ambos neste período, como foi a preparação das partes para o casamento, se tinham noção do significado do matrimônio enquanto sacramento uno e indissolúvel, como foi o casamento em si, a lua-de-mel, os primeiros dias de casados, as dificuldades que surgiram, quando surgiram, quais foram estas;  como era o relacionamento das partes no tocante às obrigações de esposo e esposa, afazeres domésticos, emprego, trabalho, situação financeira do casal, educação e sustento da prole, quando se separaram, por quais motivos se separaram, e se tentaram ou não a reconciliação.
De posse destas informações e com os documentos em mãos a pessoa retorna ao Tribunal e será, caso queira, encaminhada a um dos Advogados (que no âmbito canônico se chamam Patronos). O Patrono, se for o caso, ou a própria parte,  elabora então o Súplice Libelo (Petição Inicial) e apresenta ao Tribunal que julgando procedente vai instaurar a causa estabelecendo a Dúvida inicial (ou seja, os títulos ou os cânones pelos quais a causa será julgada).  A outra parte é informada do processo e pode  oferecer ou não a Contestação da Lide. Veja bem, é importante que a outra parte (chamada Demandada) participe do processo e apresente a sua versão para os fatos pois ao Tribunal interessa a verdade dos fatos e é o contraditório quem ajudará a esclarecer a verdade sobre estes mesmos fatos. É importante lembrar que o objeto do juízo não é uma ou a outra parte mas, o sacramento em si.
O processo, num primeiro momento, não visa saber de quem foi a culpa mas, se o matrimônio foi válido ou não. Estabelecida a Dúvida e após a contestação ou não da parte demandada o Defensor do Vínculo, que tem por obrigação aludir a tudo quanto possa garantir a validade do vínculo matrimonial apresentará os quesitos para a oitiva das partes  e das Testemunhas de uma ou de ambas as partes. Terminada esta etapa o tribunal poderá solicitar, caso seja necessário, um laudo pericial. Depois se dá o que chamamos publicação dos autos. As partes tomam conhecimento dos fatos do processo. Após a perícia o Patrono, se houver, apresenta suas alegações finais, o Defensor do Vínculo ponderando as circunstâncias apresenta suas observações finais e remete os autos aos Juízes do Colégio.
Nas causas matrimonias são pelo menos três os Juízes. Cada um destes depois de ler e analisar criteriosamente os autos, emite seu voto e na Reunião de Sentença, após as ponderações de cada Juiz é estabelecida a Sentença. Terminada a causa em primeira Instância, esta é automaticamente remetida à Segunda Instância. É necessário que hajam duas sentenças conformes para se declarar nulo um casamento.
O tempo de demora varia de Tribunal para Tribunal. O Código de Direito canônico estabelece como tempo máximo um ano para a Primeira instância e 6 meses para a Segunda Instância.
Atualmente se tem uma estatística sobre o número de pedidos de declaração de nulidade matrimonial?
Não saberia precisar o número exato de causas. Creio que a Signatura Apostólica tenha uma estatística mundial, mas desconheço que tenha publicado estes dados. Mas, em São Paulo,  aproximadamente de 300 a 380 causas são protocoladas por ano, em Primeira Instância. Destas pelo menos 90% são concluídas e a maioria tem recebido sentenças afirmativas ou seja, estes casamentos foram declarados nulos.
Mas, veja bem, tudo depende de cada processo. Não significa dizer que todos os processos protocolados receberão automaticamente uma sentença afirmativa. Existem casos em que fica comprovada a validade do sacramento e assim sendo, nem mesmo o Papa pode dissolvê-los.

Freqüentemente ouve-se dizer que algum sacerdote tenha abençoado as alianças de casais em segunda união, inclusive entre pessoas famosas, o que causa comoção na mídia…

É preciso, antes de tudo, ver o seguinte: Tratam-se de padres realmente? São padres da Igreja Católica Apostólica Romana ou pertencem a alguma outra denominação religiosa?
Se forem padres da Igreja Católica Apostólica Romana, há uma proibição para tais bênçãos, inclusive os Bispos do Regional Sul l da CNBB (Dioceses do Estado de São Paulo) publicaram orientações a este respeito, recomendando que tal prática fosse abolida, pois, na maioria dos casos, corre-se o risco de simular um matrimônio. A simulação de um sacramento é um delito canônico passível de penalidades.
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Ainda sobre o assunto, Bento XVI amplia o entendimento com a sabedoria que lhe é peculiar…
Em janeiro deste ano, o Papa advertiu sobre o perigoso aumento das declarações de nulidade matrimonial com o pretexto da imaturidade psíquica.
É necessário, explicou, preservar a comunidade eclesial «do escândalo de ver destruído na prática o valor do matrimônio cristão pela multiplicação exagerada e quase automática das declarações de nulidade, em caso de fracasso do matrimônio, com o pretexto de certa imaturidade ou fraqueza psíquica do contraente».
A propósito disso, o Papa exortou os agentes do direito a recordar a diferença «entre uma maturidade psíquica, que seria o ponto de chegada do desenvolvimento humano, e a maturidade canônica, que é, ao contrário, o ponto mínimo de partida para a validez do matrimônio».
O pontífice pôs o acento na diferença entre «incapacidade» e «dificuldade» – enquanto que apenas a primeira torna nulo o matrimônio; «entre a dimensão canônica da normalidade, que inspirando-se na visão integral da pessoa humana, compreende também formas moderadas de dificuldade psicológica, e a dimensão clínica, que exclui do conceito de normalidade toda limitação da maturidade e toda forma de psicopatologia».
O Santo Padre convidou, portanto, a discernir «entre a capacidade mínima, suficiente para um válido consenso, e a capacidade idealizada de uma maturidade plena que visa a uma vida conjugal feliz».
O conceito de «incapacidade»
Entre as diversas causas de nulidade por imaturidade psíquica estão todas aquelas que podem ter comprometido em um dos dois cônjuges a capacidade consensual para assumir e cumprir as obrigações fundamentais do matrimônio.
Nestes casos entram: a falta de suficiente uso de razão, no qual o sujeito que apresenta uma grave alteração das faculdades psíquicas não é consciente de seu próprio estado e não pode autodeterminar-se livremente; ou também o chamado «defeito de discrição de juízo» no qual o sujeito é consciente de seu estado e não perde a racionalidade necessária, como as formas graves de neurose e de psicopatia.
A incapacidade de assumir e cumprir as obrigações essenciais do matrimônio pode ser também provocada por dependência química ou também ser produto de perversões ou afecções de caráter sexual.
As definições que os canonistas oferecem dos distúrbios da personalidade se aproximam às formuladas nas edições do Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, elaborado pela Sociedade Americana de Psiquiatria (DSM).
O DSM as subdivide fundamentalmente em três grupos: estranho-ecêntrico (distúrbios paranóides, esquizóides e esquizotípicos da personalidade); amplificativo-emotivo (distúrbios anti-sociais, borderline, histriônico e narcisita); ansiedade-medo (distúrbios de personalidade evasiva, dependente e obsessivo-compulsivo). A estes três grupos se acrescenta uma categoria residual, denominada distúrbios da personalidade não especificados ou «mista».
Contudo, a questão da natureza psicopatológica dos distúrbios da personalidade é relevante do ponto de vista canônico somente se a presença de uma séria forma de anomalia clínica incidir sobre as faculdades naturais da pessoa, ou seja, sobre a inteligência e a vontade.
O homem é capaz de casar-se
Na audiência aos membros da Rota Romana,em Janeiro, o Papa sublinhou em primeiro lugar a necessidade de «redescobrir em positivo a capacidade que em princípio toda pessoa humana tem de casar-se em virtude de sua própria natureza de homem ou de mulher».
Logo depois, alertou sobre o risco, na sociedade atual, de «cair em um pessimismo antropológico que, à luz da situação atual cultural, considera quase impossível casar-se».
«Além do fato de que esta situação não é uniforme nas diversas regiões do mundo – observou -, não se pode confundir a incapacidade consensual com as dificuldades que muitos atravessam, especialmente os jovens, chegando a considerar a união matrimonial como normalmente impensável e impraticável.»
«Ao contrário – precisou -, a reafirmação da inata capacidade humana ao matrimônio é precisamente o ponto de partida para ajudar os casais a descobrirem a realidade natural de matrimônio e a relevância que ele tem no plano da salvação.»
«A capacidade deve colocar-se em relação com o que é o matrimônio essencialmente, ou seja, a íntima comunhão de vida e amor conjugais, fundada pelo Criador e estruturada com leis próprias e, de modo particular, com as obrigações essenciais inerentes a ela.»
Dentro das obrigações essenciais do estado conjugal se inclui o consortium vitae ou também o ius ad vitae communionem, que se identifica com a ajuda mútua, não só prática ou do ponto de vista da intimidade sexual, mas também no sentido mais amplo e profundo, orientado ao bem dos cônjuges, exaltando sua dimensão oblativa.
A capacidade para o matrimônio, continuou o Papa, «não se mede em relação a um determinado grau de realização existencial ou efetiva da união conjugal mediante o cumprimento das obrigações essenciais, mas em relação com a vontade eficaz de cada contraente, que torna esta realização possível e operante já no momento do pacto nupcial».
Da mesma forma, recordou como algumas correntes antropológicas «humanistas», orientadas «à autorrealização e à autotranscendência egocêntrica», idealizam até tal ponto a pessoa humana e o matrimônio, que acabam por «negar a capacidade psíquica de muitas pessoas, fundado-a em elementos que não correspondem às exigências essenciais do vínculo conjugal».
Frente a estas concepções, os especialistas de direito eclesial devem levar em conta o «realismo saudável» ao qual se referia João Paulo II, «porque a capacidade faz referência ao mínimo necessário para que os noivos possam entregar seu ser de pessoa masculina e feminina para fundar esse vínculo ao qual está chamada a grande maioria dos seres humanos», concluiu o Papa.